687 - Pérolas e Diamantes: Estou a pensar fundar...
Estou a pensar fundar a confraria do chícharro. Mas a verdade é que me sinto esquisito, patético e até vulnerável só em pensar no tipo de indumentária que esse tipo de gente veste nos momentos solenes. De facto, tenho de confessar que aprecio mais a vestimenta de burel que se usa nas feiras medievais organizadas por esse país fora. Todas diferentes e todas iguais. Eu ando a tentar alguns tópicos de aproximação. Mas ainda é surpresa. Há epítetos apenas ao alcance dos párocos de aldeia, que é uma espécie de fauna divina em vias de extinção. E lá vai um pai-nosso. O bom vinho eleva o espírito e acompanha também muito bem uma boa salada de chícharros. E lá vai uma ave-maria. O que é preciso é descobrir ângulos novos nas velhas questões. E novas mensagens nas velhas orações. E lá vai um ato de contrição. De repente fui percorrido por uma sensação de pessimismo sobre a Humanidade. Mas é coisa que passa rápido. Já estou habituado. Há tanto êxtase na minha inércia. Sou um felizardo. O segredo do nosso desenvolvimento assenta numa mistura fina entre novos-ricos e novos-pobres. Ao povo povinho povo dói-lhe a cabeça de tanto pensar. Está na hora de tomar a medicação. O povo povinho povo sente-se a levitar quando puxa do seu cartão de débito no hipermercado. Sente-se alguém. E também quando se lembra de um qualquer alto dignatário do Governo a inaugurar o quartel de bombeiros lá da terrinha, em pleno verão, mas sem tirar o casaco para não quebrar o protocolo nem ferir a imagem da dignidade do Estado. Depois vai tudo para o McDonald’s, dar fortes dentadas nas sandes de carne prensada e mergulhar as batatas fritas de plástico no ketchup. Provavelmente, o seu tom agreste não corresponde à sua verdadeira essência. O nosso povo é devoto de Nossas Senhoras de Fátima fosforescentes e também das que choram lágrimas em cascata para redimir os pecados de todos os portugueses, incluindo agnósticos, ateus, islamitas moderados, budistas, etc. E para provar que sabe sofrer põe-se a apagar velas com os dedos. Por vezes, a chuva empasta tudo. Noutros dias é o sol que abrasa céu e terra. E não é simpático, seja lá para quem for, em dia de procissão domingueira estival, envergar fato e gravata, ou vestido domingueiro, ser sovado pela fanfarra dos bombeiros, andar atrás de um andor decorado a cravos brancos e gladíolos, a pedir a Deus perdão pelos pecados cometidos e a cometer. A paz interior depende da dispepsia. Isto apesar do pão ázimo não a desencadear. Antigamente via-se fome na cara das pessoas. Agora é mais diabetes, colesterol e triglicerídeos. O progresso deu nisto. Já não há galinhas que choquem ovos. Agora é tudo gerado em incubadoras. É desilusão atrás de desilusão. Qualquer dia acontece para aí um terramoto ou a queda de um cometa. E vai tudo para o galheiro. O castigo divino está para chegar. Antigamente, na Páscoa, beijava-se a cruz do compasso. Rezava-se. Agora opta-se pela ida à vidente tentar prever o futuro. No país do passado, os casais equilibravam-se num trapézio de pobreza. Hoje, apreciam disfarçar-se de parelha de palhaço rico e palhaço pobre. O circo continua. E há festas e romarias para todos os gostos e feitios: São Caetano, Senhor da Piedade, Nossa Senhora d’Agonia, São João, Santo António, Festa do Avante, Festa do Pontal, Festa do Idoso, etc. Distintos deuses e querubins para satisfazer toda a gente. Todos diferentes, todos iguais. A fé a levedar como se fosse pão. Apesar dos pesadelos intermitentes, na vida do povo povinho povo também há sonhos com a dose suficiente de açúcar. O corpo ainda estremece com a memória do frio. Por razões ainda não determinadas, Portugal, dizem os estudos da OMS, é um dos países com maior taxa de mortalidade por causas indeterminadas. Os portugueses têm fama de preguiçosos e de revelarem propensão para gastarem tudo em vinho e mulheres. Mas, como todos sabemos, a fama é um conceito relativo. E também gostam de mentir. E de arrepender-se do ato. Mas, como também todos sabemos, mentir é uma forma discreta de ir sobrevivendo. Desde o topo até à base, este é o país das meias-verdades. Por fim, parece que estamos a chegar a algum lado. Não sei se já vos disse, mas estou a pensar fundar a confraria do chícharro. A verdade é que…
PS – Para que tudo seja transparente como o vidro produzido na Marinha Grande, desde já deixo aqui expressa a minha declaração de interesses. Sou natural da Torre de Ervededo, povoado pertencente ao concelho de Chaves, cujos habitantes são apelidados de chicharreiros, isto segundo a Etnografia Transmontana, do Padre Lourenço Fontes. E, não sei se já vos contei, estou a pensar seriamente em fundar a confraria do chícharro...