688 - Pérolas e Diamantes: E aqui estamos nós...
E aqui estamos nós em bicos de pés, que é a forma de termos alguma altura para que nos vejam. O poder manobra a mente dos néscios que o escutam. A lei do menor esforço condu-los. É difícil esclarecer quem não tem opinião. Quem só tem certezas. Convém não esquecer que a inteligência é o motor do mal. E também do bem. E eu acólito a ajudar à missa. A potência de Deus é pífia. Por alguma razão mal compreendida, ou deficientemente explicada, nestas terras, o progresso, como dizia o meu avô, bota sempre lá para tarde. Quando o sol está a atingir o zénite, costuma despenhar-se por trás da montanha. Depois cai-nos a fé aos pés. E nós a tentarmos levantar a espinhela caída. Mas com lamentações ninguém ganha vida. Com todas estas pressas, ninguém está para os nossos vagares. Antigamente, os estoicos rezavam as matinas no meio da geada, enquanto as lagartixas dormiam, os ratos moinavam e a seiva parava de correr no tronco e nos ramos das árvores despidas. Quem manquejava da alma não tinha apelo nem agravo. Este estado social tem mãos largas. A verdade é que não lhe custou a ganhar. Pede tudo emprestado. Sim, eu sei, quem assim fala tem alma de cântaro. São insondáveis os caminhos do Senhor. E também o voo riscado das andorinhas. Quando nos abeiramos do povo, a missa deixa de ser conventual. E os galos, cheios de farófia no seu poleiro, levantam a garimpa e põem-se a proclamar o bom tempo, apesar da meteorologia dar mau tempo para a quinzena. Enxames de diabinhos voltejam à porta das igrejas. E nós de Herodes para Pilatos com a firmeza dos pensamentos movediços. A verdade é que os ares andam envenenados e os profetas da política transformaram-se em Zés do Telhado que assaltam os pobres com impostos tão desfiados como o pato para o arroz que leva o seu nome. O pobre, quando a esmola é gorda, desconfia. Quanto a homenagens, ensina o bom senso, não devem ser parcas nem pródigas. Portugal continua o retábulo das almas do Purgatório. Todos de mãos postas a pedir, a rezar o terço e a participar em procissões. Antes ser pobre de espírito. E lá estão os sardões ao sol e as borboletas a esvoaçar tremulamente. E os tentilhões a comerem mosquitos. E as florestas cheias de eucaliptos e pinheiros bravos que ardem sem destino. São Francisco tem muitos bajuladores mas poucos seguidores. Olhai para o que eu digo, não olheis para o que eu faço. Com a verdade me enganas. Chilreiam os pássaros nas sebes. Os corvos mudaram de cor. E os melros de canto. Ainda não percebi por que razão é que Deus pai enviou a este mundo o seu rebento Nosso Senhor Jesus Cristo para nos redimir e salvar. Quem é que no seu juízo perfeito envia um seu filho para o açougue? Melhor seria criar um urso e mandá-lo caçar borboletas. Os pecadores são porfiosos e traiçoeiros. Não valem o sacrifício. E falar-lhes do paraíso é como dar cubos de açúcar aos cavalos. A cristandade é uma baralhada de pecados, orações, perdões e ânsia. É fogo fátuo e luz de pirilampo a alumiar uma catedral. Nós somos as sombras do infinito. A cristandade está cheia de almas caridosas que se dizem crentes, mas não são devotas. Alguns pensam que são querubins a quem caíram as asas. A acreditar, eu prefiro a imagem do Paraíso, Adão e Eva, ou eu Tarzan e tu Jane, animais ferozes em liberdade, céus cobertos de pombas brancas. Instintos luminosos e beijos pungentes. Eu creio na exaltação da carne, na puberdade, na licenciosidade, no prazer, na existência de fluidos voluptuosos. Provavelmente isto é pecado, mas o perdão existe para alguma coisa. À fome é preciso dar-lhe de comer. É difícil com sete notas apenas fazer uma sinfonia. Mas há quem o faça com muita mestria. Difícil também é fazer um samba de uma nota só, mas Tom Jobim conseguiu a proeza de o tentar. E o tempo a escoar-se-nos por entre as mãos. Com a idade é avisado ter cuidado com as excitações e as correntes de ar. Toda a gente se queixa. A queixa tem personalidade portuguesa. Até já está institucionalizada. Faz parte da constituição da República. E os dias lá vão passando, uns penosos e outros ligeiros. Cada qual transporta às costas a sua cruz, umas bem mais carpintejadas do que outras. Os calvários são constituídos por voluptuosos sentimentos. Há gente que pensa que por rezar o terço num exemplar vindo de Jerusalém as ave-marias chegam mais rápido aos ouvidos do criador. A Ele tanto lhe monta. Usa aparelho acústico. E as mais das vezes tem-no desligado por mor dos zumbidos inquietantes que produz.