697 - Pérolas e Diamantes: Urtigas
Por aí andam espalhados os servis que não possuem qualidades, apenas pretensões. Há também os eremitas que, mesmo estando presentes, estão ausentes. O orgulho tem os seus inconvenientes. Todos o sabemos. Ainda continuo a ter uma arreigada fé nos velhos relatos. Por vezes prefiro ignorá-los para não me preocupar ainda mais com aquilo que não merece preocupação. O entusiasmo já enfraqueceu. Mas. Mas, por vezes, experimento uma estranha vontade de rir. Outras, as lágrimas afloram em meus olhos. Foram os desgraçados dos livros que fizeram de mim um romântico. E um sonhador. Nada disso me favoreceu. O desenvolvimento da inteligência e da cultura tem sempre consequências imprevisíveis. E nada despiciendas. As ilusões magoam. Sei-o agora. Mas. Mas mais vale tarde do que nunca. O tempo não está bom para passeios. Nem para devaneios. Dizem que a franqueza faz honra. É tudo treta. Por vezes ainda se ouvem os ecos da flauta tocada pelo flautista de Hamelin. Nós tardamos a esquecer aquilo que nos causa embaraço. Os ratos de agora não se apanham com trigo roxo. São filhos do autoproclamado homem santo, Rasputine, que vomitou o veneno que lhe ministraram por causa de uma úlcera crónica. A literatura faz-me confundir realidade e sonho. A confusão tomou conta das minhas memórias. A leitura do catecismo. A luta diária. A mudança das estações. As manhãs geladas. A campainha da escola. As noites escuras e frias. A sala de aula. As tardes vagamente iluminadas e mal aquecidas. As fatias de pão com manteiga. Os livros dobrados no cantinho da margem. As ardósias estaladas. As reguadas. Os cadernos molhados de lágrimas. Os cortes de cabelo à pela-porcos. Os domingos chuvosos. O toucinho grelhado no espeto. As férias grandes. Os banhos no rio. Os primeiros namoricos. Pausa. O cavalo indolente do tempo parte mais uma vez com o seu passo acostumado. O que é, para mim, grande motivo de reflexão. As mãos do tempo que pegam nas correias do cavalo são agora mais magras e brancas, parecem até transparentes. Olho para o lume e penso que o fogo também se extingue. A mãe e o pai já se foram há muito. Desse borralho já não surge calor, apenas um pouco de luz estelar. Vamos lá então remover as brasas, espevitar as velas e tomar o chá, com um pouco de aguardente velha. O velho sentimento familiar penetra na casa, como se fosse um sopro de ar frio. Aproximo-me das memórias com passinhos de lã. Permanece o mesmo ar frio e a luz a extinguir-se. Lembro-me de ouvir, sozinho, o relógio da igreja bater as horas de inverno. Sentado no quarto. Triste. Triste o quarto. Triste eu. Tristes as horas. Triste o sino. Triste o livro sobre o qual eu estava debruçado. Tristes as memórias do recreio da escola quando a respiração dos rapazes se transformava em vapor e subia no ar. E eles a soprarem nos dedos para atenuar o frio. E a baterem com os pés na terra para aquecerem os pés. E eu, de olhar vazio, a espreitar para as memórias, sem as poder encarar de frente. Brilha agora o vazio. Tenho um certo medo de acordar os mortos. Ou melhor, as suas memórias. Lembro-me das palavras duras dos adultos a equivalerem-se a pancadas. Algumas memórias dançam comigo ao crepúsculo. Ativo o lume, mas o humor não melhora. As ausências já são mais do que muitas. Algumas memórias riem-se sem olharem a meios. Outras choram. Outras fazem de mim um vincelho. O vento varre o plaino, exatamente como outrora. Agita as folhas. Ajuda as aves a voar mais lá para o alto. Pausa. O avô costumava, nessa altura, contar uma ou duas histórias bizarras e desorientadas. Sem moral. Lembro-me que o tio João se costumava rir aos solavancos. E a avó se refugiava num azedume passageiro. Há sempre dificuldades em penetrar nos dédalos da moderna Babilónia. Há os que bebem. E existem os que se babam. A efusão de confiança é uma coisa bonita de se ver. Nem sempre o caminho mais curto é o melhor. Estou comovido. Quase tanto como quando tive de me separar do meu cavalo de pau. Passei a andar a pé e a brincar sentado no escano. A paz dos domingos reinava até à madrugada de segunda-feira. A paz das manhãs domingueiras eram quase santas. Saíam cânticos das igrejas. Os fiéis primeiro iam inquietos e depois regressavam irrequietos. Nisso residia toda a diferença. Depois seguia-se o almoço e uma tarde pasmacenta. E logo após vinha o dia seguinte. Segunda-feira era como caminhar num campo de urtigas.