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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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16
Set24

698 - Pérolas e Diamantes: A direção correta

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 3 (6).jpg 

Os burros da democracia são pequenos. Os burros do fascismo eram grandes. Bem vistas as coisas, nem sequer os historiadores percebem bem a História. Nem as histórias. Os burros pequenos são bons de substituir. Já os grandes eram outra coisa. Morriam vitimados pela fome urgente. Tudo era tão lento antigamente! As horas infinitas. As segundas-feiras cheias de urtigas. A tristeza perpétua. A esperança inexistente. A pátria a chamar por nós. Ultramar. Mentiras e derrotas transformadas em vitórias e verdades. Nós sempre os peões do xadrez. O silêncio. O amor e o silêncio. O amor. O silêncio. O silêncio. O silêncio. O ultramar. Nós na escola a afagar mentiras. E a suportar as reguadas do professor. E a rezar orações para que a palmatória do verdugo de crianças se quebrasse e lhe batesse na testa para o fazer chorar. Ou arrepender-se. Por vezes o passado irrompe pelo presente e provoca calafrios. Tanta coisa começou a correr para tropeçar e cair a meio do caminho. Faz parte da história. Continua a ser triste ver homens a vender passarinhos engaiolados. Ou lembrar beatas a espanarem o pó aos santos. Ou a recordar o som cavo do vómito dos bêbados ao saírem das tabernas. Ou a rememorar a ida às hóstias para o padre Zé e a recompensa de ficar com as sobras do pão ázimo. Ou as manhãs de domingo a ler os livros de banda-desenhada do Mandrake, do Flash Gordon, do Cisco Kid, do Luís Euripo e do Príncipe Valente. Ou os mergulhos de mar na colónia de férias. Ou as cabeçadas dos robertos nas feiras. Não sei se me consigo salvar no meio deste turbilhão de memórias. Há gente que diz escrever crónicas. E escreve-as, de facto. A ser assim, porque assim é, eu escrevo outra coisa. Situações, intrigas e pretextos de superfície ficam para os sábios, que são os sabidolas de sempre. É duro andar atrás da verdade e encontrar a mentira. É ainda mais duro investigar a mentira e encontrar a verdade. Nada é aquilo que parece. Olhamos para o interior e vamos perdendo o sentido. Consomem-nos os anjos e os demónios, as leituras, as abordagens e a solidão. E os mal-entendidos e os despojos dos dias. E as narrativas sem factos. E os factos sem narrativas. Em verdade, em verdade vos digo, o bem não é feito de círculos concêntricos. Eu procuro, como muitos outros, o sentido da vida, mas nesse descaminho apenas encontro os Monty Python a escreverem as piadas mais sinistras e inteligentes do mundo. Always look on the bright side of life. Na volta cá os espero. Todos almas do Purgatório a aquecerem-se nas labaredas das palavras e nas imagens do catecismo. A piedade é toda gasta em churrasco e minis. Mas, verdade seja dita, cada um de nós oculta dentro do seu peito um coração sensível. A verdade é que no Purgatório apenas se apanham queimaduras de segundo grau. Ou seja, dá para aguentar. O vento traz da serra o cheiro enjoativo das mimosas. Não sei que horas são neste mundo onde elas estão por todo o lado. O tempo antigamente ficava lá longe. Agora está aqui perto de nós. À espera. E nós à espera dele. E ele à espera. De nós. Não há como fugir-lhe. Jesus tinha razão quando avisava, no Evangelho de São João : “Não entendeis o que eu digo porque não entendeis o que eu penso.” Uns morrem de juventude e os outros de velhice. Isto continua a não fazer sentido. Dizem que o furor poético nasce da desordem. Isto continua a não fazer sentido. Metáforas indiretas são agora a minha fonte de alimentação. Provavelmente, não se desce de uma cruz vivo. Essa é a minha certeza religiosa. Saint-Exupéry dizia que é preciso gostar das pessoas sem o mostrar. E eu a tropeçar neste entendimento, nessa ternura vigilante. A revolução faz-se por dentro. Será que os anjos usam óculos? Alguém voa por cima dos pesadelos. E eu a beijar o orvalho. À espera. A embrulhar um sorriso como se fosse um pastel de Chaves. A inclinar-me para trás por causa da dor nas costas. A cruzar as pernas em sentido contrário. A esconder a aflição debaixo da ironia e a discutir a ilusão da literatura. A vigiar o desleixo. As palavras não consolam. Os anjos, além de míopes, ficaram obesos. Nos sonhos de criança não cabiam as angústias da prosa. A direção correta é uma coisa invisível.

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