702 - Pérolas e Diamantes: Vá lá, vamos embora...
E por aqui ando (andamos?) a imitar o mundo. Às voltas. Umas vezes tenho frio. E outras calor. Aprendi, lendo os escritores de bolso, que os rododendros florescem em maio e os crisântemos em setembro. Todos gostamos de jogar ao faz-de-conta, crianças incluídas. É saudável manter uma certa distância da realidade. Uns brincam à guerra, no meio da paz. E outros brincam à paz, no meio da guerra. Ninguém quer estragar as férias. Afinal o que é mais importante, a guerra, a paz ou as férias? A pomba desta paz é forjada a aço. E o ponto de interrogação é feito em barro. Vá, vamos lá dividir a guerra e partilhá-la como se fosse uma pizza. Não, não e não, nós gostamos é de cozido à portuguesa. Por aqui os passarinhos cantam e o sol brilha. Por cá o gosto musical é uma coisa estonteante, oscila entre as músicas do bacalhau e o alho e as canções de abril. É como misturar mirtilos e rabas. Qualquer dia Jesus volta a ressuscitar e a paz ressuscitará com ele. Os céticos entrarão em desespero. E os crentes em delírio. O papel de Judas continuará a ser ingrato. Como sempre. Um futuro luminoso espera-nos lá mais para a frente. Porquê desistir agora que estamos prestes a chegar? Nós aqui estamos para destruir o paradoxo de Zenão, imbuídos no pensamento profundo que nos permite meditar sobre o infinito, o movimento, o conhecimento, o tempo, o contínuo, a reta, o número, etc. Alguém sugeriu que, para sobreviver, se deve macaquear as ideias que os outros têm de nós. A ruralidade também tem os seus atrativos. Dizem. E nós fingimos que acreditamos. Continuamos a não pensar aquilo que dizemos e a não fazer aquilo que pensamos. E assim vamos sobrevivendo, enquanto sociedade. Nos contos alemães, recolhidos pelos irmãos Grimm, é frequente as heroínas e os heróis encontrarem a felicidade só depois de realizarem trabalho árduo e de viverem com sobriedade. Além de terem de beijar sapos e de cuidar de velhos maus. Só após estas agruras é que acabam por ser recompensados. Nos contos portugueses, os nossos heróis e heroínas são, ao mesmo tempo, preguiçosos e astutos. Ou dormem, fazem que trabalham ou passam o tempo sem mexer uma palha. Evitam qualquer esforço que lhes seja pedido, ou sugerido, falham os compromissos e confundem sempre tudo. O seu máximo objetivo é que os deixem em paz. E sossego. Nunca beijam sapos ou cantam lindos madrigais. Quando recebem o reino, a princesa ou o príncipe de bandeja, é porque jogaram no totoloto ou compraram a lotaria do Natal. Somos sonhadores porque a realidade é deprimente. E somos deprimidos porque os nossos sonhos são irrisórios. Nem nisso somos grandes. Os portugueses têm alma de cuscos, de vigilantes. Afinal não é necessário fazer nada, além de se sentar numa cadeira e olhar em seu redor, ou para um monitor. Esse trabalho esgota-se com a simples presença do vigilante, conferindo-lhe respeito e responsabilidade. E ali estão eles, parados, envergando uniformes bem visíveis. Por vezes usam auscultadores ou pequenos microfones, para impressionar. Outras vezes comportam-se como crianças, compram caixas de fósforos e põe-se a brincar com o fogo. No verão o país arde como se estivéssemos num filme de ficção-científica. Ainda ninguém conseguiu descobrir quem está por detrás disso. A telenovela dos bombeiros passa então nas televisões em horário nobre. E o povo, sentado no sofá, ri, chora e dá peidos conclusivos. A felicidade faz-se destas pequenas coisas. Por causa de tanta televisão, é óbvio que os portugueses sofrem de dissonância cognitiva, as suas perceções têm pouco a ver com a realidade, por vezes são mesmo incompatíveis. E lá fora a realidade a dizer-nos que muitos portugueses andam à procura de emprego, de um infantário ou de uma escola para os filhos, ou de um apartamento para arrendar. Todos à procura da chave da porta que dá para o futuro. Os portugueses a quererem passar à sala seguinte. E os emigrantes a quererem ocupar a despensa, por falta de melhor espaço. Já muitas pessoas se sentem mal com o seu corpo. E até com o seu caráter. E a sua inclinação. Uns acham-se demasiado largos, outros demasiado gordos, e também há os que enchem a pele do seu corpo com tatuagens complexas. “Vá lá, vamos embora.” “Ainda não. Ficamos mais um bocadinho. Saímos logo a seguir.”