O Homem Sem Memória
34 – Sachar as batatas é tarefa violenta para uma criança. Sobretudo se não estiver habituada aos duros trabalhos do campo. E este era o caso do José. Franzino e de saúde um pouco débil, o filho do guarda Ferreira tinha umas mãos mimosas, brancas, de pele quase transparente onde se observavam as linhas rosadas das veias finas. Todo o seu fino corpo de vara verde era de um branco leitoso e delicado, em nítido contraste com o cabelo e os olhos castanhos. Mesmo quando se ria, os seus olhos permaneciam tristes e interrogativos.
Com três anos foi operado às amígdalas e às adenóides em Lisboa por fazer amigdalites e otites com muita frequência. Foi para o hospital militar às carrachulas da Dona Rosa, nesse tempo ainda menina Rosa, a quem os homens mandavam piropos e assobios circunflexos. Lembra-se de no hospital lhe meterem um aparelho na boca com um sabor doce e enjoativo e de mais nada a não ser de acordar com incomodativas dores na boca, na garganta e no nariz. Lembra-se, ainda, de comer gelados, apesar de ser tempo frio. Lembra-se também dos beijos que a mãe lhe dava, contrastando com os castigos com o cinto ou atando-o com linhas à mesa da sala de jantar que era comum a dois inquilinos.
Quando regressou a casa encheram-no de mimos, deram-lhe carrinhos dos bombeiros, carros de corrida, bombons, mais gelados, um chapéu de palha que mal estreou, pois numa tarde soalheira, junto ao Tejo, enquanto olhava para os cacilheiros, um vento brincalhão lançou-o ao rio, ao que o guarda Ferreira, em vez de se atirar à água para o ir buscar, limitou-se a remocar: “melhor seria que o comesse um burro albardeiro”.
Foi também por essa altura que apareceu lá por casa o Mário, que era um GNR nado e criado na aldeia transmontana de Vilela Meã, muito amigo da família, mas a quem um desgosto de amor levou ao suicídio. Antes de tal acontecer, o guarda Mário jantava muitas vezes lá em casa, sobretudo nos dias festivos. Estando longe da aldeia e dos seus, convivia tão de perto com a família Ferreira que era como se fosse membro dela. Era um verdadeiro tio para o José. Dava-lhe dinheiro para ir comprar fruta ao vizinho do rés-do-chão ou para ir comprar rebuçados e chocolates ao bar do quartel das Janelas Verdes e também lhe oferecia santos com as orações impressas no verso por onde o José aprendeu a ler. O Mário apareceu uma semana antes do dia de Natal com um enorme peru que armadilhou a casa de cagadelas e se fartou de espalhar milho e de correr atrás do gato mijão. Dois dias antes da consoada, a casa encheu-se do cheiro intenso e melancólico da aguardente. O peru foi embebedado com sopas de pão e bagaço, com requintes de crueldade. Nas alturas de maior bebedeira, o peru rodopiava por aquela sala como se fosse um bailarino de ballet moderno, tropeçando nas próprias patas, mas levantando-se com tanta graça que até a vizinha velha se mijou a rir. O dia de Natal foi dedicado a abrir prendas – sobretudo as ofertadas pelo Mário que eram generosas e cheias de bom gosto, evidenciando as suas qualidades de verdadeiro amigo que gostava de ver as outras pessoas alegres e felizes – e a comer o peru recheado acompanhado com batas assadas no forno. Comeu-se e bebeu-se. Bebeu-se e comeu-se. Ao fim da tarde o Mário levou o José a dar um passeio pois, disse ele para a namorada que lhe havia de ser fatal, “a Rosa e o Ferreira necessitam de ter algum tempo para estar a sós”. E aquelas palavras faziam todo o sentido, pois o José dormia no mesmo quarto dos pais e todos tinham insónias frequentes.
No dia de Ano Novo, o Mário passou lá por casa e parecia outro, calado, triste, desanimado e lacrimejante. Todos três ficaram a olhar para ele como se estivessem a assistir à missa. Ele sentou-se num banco e disse: “Aquela puta deixou-me. Trocou-me por um fadista merdoso e bêbado que a enche de porrada e a colocou como empregada de balcão de um bar de alterne.” “Deixa lá isso Mário, mulheres há muitas”, disse o guarda Ferreira. “E eu gostava tanto dela”, confessou o guarda enamorado com as mãos postas. “Ela não te merece, Mário”, sentenciou a mãe do José. Por fim falou o José que, no seu indignado clamor de anjo rabudo, proferiu: “Manda-a para o caralho”. Palavras que foram de imediato censuradas com uma valente bofetada da menina Rosa que fez com que o seu filho fosse projectado para um metro de distância. Ocorrência que levou a que o guarda Ferreira se levantasse da sua cadeira e pespega-se um valente murro na mulher que a derrubou de imediato como se fosse um saco de batatas. Ela não se ficou e, pegando numa faca, lançou-se na direcção do marido com ela em riste e só não o atingiu em cheio no peito porque o Mário lhe passou uma rasteira que fez com que caísse ao chão e espetasse a faca na madeira do soalho.
Mário pediu desculpa por ter provocado toda aquela desavença e saiu porta fora como se levasse fogo no rabo. Foi a última vez que o vimos. Nessa mesma noite pegou na sua espingarda meteu-a debaixo dos queixos e carregou no gatilho. Foi preciso uma manhã inteira para limpar o tecto da caserna do posto da GNR.
Por causa da operação feita em Lisboa, o José ficou com as defesas corporais debilitadas, continuando a fazer otites e amigdalites com frequência. Por isso os seus pais evitavam que brincasse muito na rua e que fizesse esforços físicos que o pusessem a suar. Quando suava quase sempre ficava doente. E quanto mais doente ficava, mais suava. Era essa a razão porque não o obrigavam a trabalhar no campo.
Mas nesse dia, enquanto os seus pais andavam a sachar as batatas numa terra perto de Donões, o José encontrava-se na companhia do Virtudes igualmente a sachar batatas numa leira pequena junto à Igreja Matriz. O José fazia que as sachava, mas mesmo assim esfolou as palmas das mãos ao manejar o cabo da enxada. E, por causa do esforço, suou muito. À noite começou a ter febre e vomitou o jantar. Passou toda a noite a delirar. A mãe limpava-o e mudava-lhe a camisola de hora a hora. Pela manhã foi o médico lá a casa e receitou-lhe vários medicamentos, vitaminas e óleo de fígado de bacalhau. Durante três dias e três noites esteve com febres altas e com dores que o puseram num estado de prostração desanimante. A Dona Rosa já chorava pelos cantos. Mas o Virtudes, à base de rezas, boa vontade e boa disposição, conseguiu que o José arrebitasse.
Na tarde do quarto dia, a mãe pegou nele ao colo e foi-lhe mostrar o fogão Siul novo que o pai tinha comprado ao senhor da Spar. Era um fogão branco a gás, de pernas altas, com quatro bocas e um forno pequeno, que dava para assar um frango, se fosse dos pequenos. O José ainda hoje se lembra da visão do fogão e pergunta-se porquê? Talvez por não conseguir atinar com a utilidade de um fogão numa cozinha enorme onde todo o santo dia ardia uma fogueira enorme, onde os potes fumegavam como se fossem a caldeira de uma locomotiva e onde o caldeirão da comida dos porcos fervia a toda a hora pendurado na grade central que estava fixa à trave mestra que segurava o telhado. Ou talvez porque já não se lembrava de alguma vez a sua mãe o ter pegado ao colo e de lhe dar como alimento leite-creme.
Com as ceroulas e a camisola vestida, o José fez ao colo da mãe o trajecto do quarto até ao escano da cozinha. No pote maior já fervia a água que a mãe deitou na bacia onde era costume lavar a roupa e pôr as carnes de sorça para o fumeiro. Ele gemeu um pouco, enrolou-se no cobertor e disse à mãe que não lhe apetecia tomar banho. Ela disse: “Estás todo cagado, filho. Já há cinco dias que não te lavas”. Ao que ele ripostou, empregando uma palavra que tinha aprendido no dicionário que o Padre Zé lhe tinha emprestado: “Sujo, mãe, sujo. Não sejas tão escatológica”. Ao que ela respondeu rindo-se muito: “O que eu sou é escanifobética”. Depois o João também se começou a rir e deu um peido sonoro como sempre acontecia quando gargalhava com vontade. Foi a vez dos outros irmãos se rirem também o que provocou novo peido do João e mais riso nos irmãos e na dona Rosa a que se juntou o Leão e o Virtudes, sempre num crescendo de hilaridade que nos abstemos de dar conta mais detalhada porque, afinal, já foi descrita em momento anterior.