Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

02
Dez24

708 - Pérolas e Diamantes: Confusões e hologramas

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 2 (12).jpg 

São as lâmpadas elétricas dos presépios que simbolizam hoje o Natal, e as renas e os pais natais e os bonecos de neve e os pinheiros repletos de bolas e outras bugigangas. Não são o menino Jesus, nem a sua mãe Maria e muito menos José, o seu putativo pai. Nem os pastorinhos, nem as ovelhas, nem o burro e a vaca e o trio multicolor dos Reis Magos. A memória baralha-se com a confusão do dia a dia, com a ansiedade, com a pontualidade enviesada dos portugueses. E nós a perdermos a noção das horas e das refeições. A repetir perguntas e a trocar nomes dos muitos conhecidos e amigos. E nem sempre por esta ordem. A confundir medos e conversas normais. E a fazer backup da dor e das emoções que nos chegam em cascata. E a ouvirmos o barulho dos carros e das pessoas. E a recordarmos as correrias do Lobo Mau, da Capuchinho Vermelho e da Branca de Neve. E os anões adormecidos a ressonar. E o baile da Cinderela. A olharmos para as sombras e para os espetros infantilizados que vão e vêm, sem nos pedirem licença. E nós a confundirmos a razão pura e a razão prática. As ilusões e os enganos. A presença real e a presença virtual. A confundirmos pessoas com hologramas. A confundirmos inteligência com inteligência artificial. Uns do lado de cá a irem para o lado de lá e outros do lado de lá a virem para o lado de cá. A consultar os organogramas e os horóscopos. Todos dizem gostar de viver entre coisas bonitas e cheias de luz. Mas isso apenas é resultado da leitura enviesada de livros de autoajuda. Também se deslumbram a observar, nas revistas da especialidade, as fotografias dos décores luminosos com paredes pintadas de casca de ovo e verde-água, as cortinas de seda branca, os frisos e os frescos com desenhos à Aubrey Beardsley, os móveis Art Nouveau, os bibelôs exóticos vindos de lugares distantes. Tudo o que rufa e toca é tudo a mesma tropa. E as mulheres lindas e burguesas, decotadas, a sorrirem-nos dos quadros pintados a aguarela onde fazem festas aos galgos. Em casas cheias de coisas e vazias de gente. Esta é a transição pacífica para o nada. E por aqui andamos nós a vivermos na tal cidadezinha de província, entre boutiques, restaurantes, cafés, fiéis motoqueiros do KM 0 e caca de cão, nos jardins e nos passeios. Podemos estar à espera, mas sempre prontos, nem que seja para a guerra dos mosquitos. Afinal, esta é uma terra de guerreiros intrépidos, situada a norte deste país de intrépidos guerreiros. Por aqui, a maioria, à falta de guerra, nestes tempos de paz acantonada, vai-se esvaindo em tédio. E os poderes instituídos, quer sejam eles locais, regionais ou nacionais, a assediarem-nos com sabedoria, com paciência, com estratégia, em avanços e recuos bem pensados, usando até trunfos inesperados. Bendita seja a democracia! E quanto mais provinciana, melhor. E nós a olharmos para a acrobacia dos novos democratas. Abençoados sejam. A imaginação vem-lhes toda dos livros de introdução à filosofia, à política ou ao sexo sem tabus, mas em segurança. Ou dos cursos de filosofia zen por zoom. Mais do sexo implícito que explícito. Claro que há, no meio disto tudo, muito requinte e preparação, mas pouca concretização. É sempre mais fácil apaixonarmo-nos pelos hologramas do que pelas pessoas de carne e osso. Mas também há os platónicos, os de amor construído, que se declaram à moda antiga e até são capazes de citar versos da Ilíada à sua amada, ou vice-versa, tais como: “Vamos em nossa cama congraçar-nos: / Tal ardor nunca tive e tais desejos; / (…) / Na ilha Cranaé do amor gozámos; / Hoje mais te apeteço e mais te anelo.” A verdade é que este país perdeu a graça, mas não perdeu o apetite. Petisco a petisco, enche o português a pança. Viva então o D. Quixote português. Que é velho e solteirão. E semierudito. Anarco-conservador, liberal, pacifista e misógino. Os nossos heróis são sempre longínquos, cheios de tiradas românticas para nos infernizarem a vida. Que não é bela, nem amarela. Mas por aqui vamos vivendo, nesta democracia europeia, aparentemente laica e assustadiça. A verdade é que nos sentimos bem nesta nossa alegria doméstica. É este o nosso verdadeiro destino. Muita da nossa coragem vamos buscá-la ao vinho tinto, sobretudo os homens, e ao branco, a maioria das mulheres. A perfeição necessita de imperfeição.

Mais sobre mim

foto do autor

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Pesquisar

blog-logo

Arquivo

    1. 2025
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2024
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2023
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2022
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2021
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2020
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2019
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2018
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2017
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2016
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2015
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2014
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2013
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2012
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2011
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2010
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2009
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2008
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2007
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2006
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2005
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D

A Li(n)gar