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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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23
Dez24

711 - Pérolas e Diamantes: Soluços de Natal

João Madureira

Apresentação3-2 - cópia 2 (13).jpg 

Há pessoas distintas, outras distintivas. E ainda outras que são nem sim nem não. São mais sopas de burro cansado. Umas atiram moedas ao ar. Outras aparam os cravos, de Abril. E as restantes veem e comentam. Umas sonham, outras fazem que sonham. E as restantes fazem de conta. Quando não há nada para fazer, ou nada a fazer, o melhor é fazer de conta. Umas fazem de conta que sim. Outras fazem de conta que não. E as restantes fazem de conta que talvez. A praça das celebrações está sempre fragmentada. E o pelourinho da minha terra, impassível, continua a olhar o céu com nuvens. Eu sonho, nisso sou como os outros. Pudera! Os sonhos dão-me coragem. São pequeninos. Pudera! Mas dão-me coragem. Uma coragem pequenina, mas sincera. Corajosa, mesmo na sua pequenez. Também os pesadelos são pequeninos, mas, talvez por isso mesmo, não me fazem sofrer. Tanto. O mundo, este nosso mundo, também é pequenino. Podemos desdenhar dele, troçar dele, mas todos temos orgulho. Nele. A sua pequenez é honrada, sincera. Pura. E verdadeira. Por isso fazemos tudo por ela. Para manter a nossa pequenez pequena é necessário um grande esforço. Lembro-me. Para pensarem que era orgulhoso, aprendi a ficar de pé e a andar, enquanto os outros ficavam sentados, de joelhos ou parados, a olharem a luz das velas ou da candeia. Eu à procura do meu tosão de ouro e ele a mudar de cor como se fosse uma coroa de flores no início da primavera. Lembro-me quando a minha mãe ornamentava a campa do meu avô com margaridas, crisântemos, lágrimas da Virgem Maria, dálias e outras flores de pétalas coloridas. Depois abraçava-se a mim. E chorava. E eu também chorava. Muitas vezes saímos do cemitério sobrevoados por abelhas. Provavelmente pensavam, por causa do odor que exalávamos, que éramos uma espécie rara de flores ambulantes. Quando chegava a casa, a minha mãe dizia sempre: “Senta-te, filhinho”, e depois sorria para mim. Depois dava-me um bombom de cereja e chocolate. Muitas vezes agarrava na minha mão e dizia-me que estava na hora de irmos apanhar amoras, pois as abelhas eram agora nossas amigas. À tardinha ia com a avó à casa da Dona Marquinhos da Ajuda, que morava no Bairro do Castelo, vê-la lançar as cartas como boa quiromante que era. A avó olhava para ela e sorria com beatitude. E eu, como criança pequena que também era, sentia-me imerso em felicidade. Aprendi então que um poeta, pode até vestir-se e despir-se como toda a outra gente, mas o que o distingue dos outros é a procura do homem novo. Os mais afoitos costumam planar por cima do nosso mundo. Gostava de pensar que os poetas eram anjos brancos que sobrevoavam a nossa aldeia, agitando as asas a recitar versos inteligentes. Enquanto lá fora cantavam, aos soluços, os perus que comeríamos no Natal.  Nós a trincarmos o peru e a olhar para o presépio, para o Menino Jesus, para o São José, para a vaquinha e o burrinho. E também para os três Reis Magos que nunca mais acabavam de chegar para oferecerem as suas prendas ao bebé com a perninha no ar e um dedo a indicar sabe-se lá bem o quê. Cada um é para o que nasce e o Menino Jesus nasceu para estar no presépio em palhinhas deitado a sorrir para quem lhe sorri. Nessas épocas era frequente apanhar amigdalites que tratava com antibióticos que me punham a boca a engrossar e os lábios a imitar os dos bonecos pretos que a minha avó comprava na Feira dos Santos, em Chaves, para darem sorte. E os perus continuavam lá fora a cantar, aos soluços, sem pensar no destino. O Natal de uns seres vivos é a desgraça de outros. Depois a febre subia e o vento amainava. Outras a febre descia e o vento aumentava. As grandes nuvens cinzentas do céu pareciam indiferentes. E o pelourinho também. A febre tornava a subir e eu olhava para as mãos aflitas da minha mãe. A meter e a tirar o termómetro nas minhas axilas. E eu ali continuava a ouvir os perus, no quintal, a cantar, aos soluços, e tornava a pensar na sorte que os esperava no Natal, enquanto a minha irmã saltava ao pé coxinho nos degraus da escada. As árvores continuavam a agitar-se. O pai bebia uma ginjinha e fumava um cigarro. A mãe trazia-me leite-creme e dava-mo com a colher pequena, não fosse eu engasgar-me.  Quando me lembro disto costumo ainda ficar com os olhos repletos de infância. A verdade é que nunca consegui comer peru assado no Natal. Dentro da minha cabeça ainda oiço os ecos dos soluços cantados dessas aves que os cristãos costumam sacrificar. No Natal. E noutros dias festivos.

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