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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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05
Nov10

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

36 – Quando o reco saiu da corte, os sete homens fizeram-lhe uma pega de caras como se de um touro se tratasse. E para touro só lhe faltavam os cornos. Era um bicho portentoso. O animal ia dar carne em abundância. E da boa. Alimentado em casa com batata barrosã, bolota, milho, centeio e couve-galega, até a carne gorda se comia como se fosse magra. Assada no espeto de pau, deixando cair o pingue no pão centeio, era um manjar de comer e chorar por mais. O José adorava comê-la acompanhada de cevada quentinha.

Momentos antes, a Dona Rosa fez o teatro de sempre e começou a fugir para longe tapando os ouvidos, afirmando que não conseguia assistir a um acto tão bárbaro. As outras mulheres encolheram os ombros e distribuíram-se pelos lugares estratégicos para levarem a cabo as diferentes tarefas, tais como aparar o sangue, pegar nos cestos ou fazer pequenos fachucos de palha.

Vários homens pegaram no porco pelas orelhas, outros filaram-no pelas patas e os restantes agarraram-no por onde puderam. Todos à uma, tombaram-no no chão e só depois é que o transportaram para o banco corrido onde o matador lhe enfiou o aço delicado e certeiro da faca até ao coração. Roncou que se fartou até se calar. Finalmente, os homens largaram-no. O matador insistiu em dar golpes perseverantes para o sangue continuar a correr para os alguidares de barro preto. O primeiro líquido escarlate foi dali directo para o pote. O outro foi misturado com um pouco de vinagre, para não tralhar, e mexido com paciência para vir a seu utilizado no fabrico dos chouriços de sangue e em apetitosas filhoses.

Agora todos se riam, os homens, as mulheres e as crianças. Muitas delas foram enviadas à procura das pedras para lavar o reco e andaram de casa em casa até um vizinho mais dado à brincadeira as fazer carregar com uns pedregulhos pesados enfiados dentro de um saco de serapilheira. Quando, exaustos, chegaram de novo ao terreiro, deitaram as pedras ao chão e puseram-se a olhar admirados para os homens que, agora, chalaceavam com a toleima dos garotos, enquanto chamuscavam o pêlo do animal com fachucos de palha centeia e o barbeavam com facas amoladas em pedra apropriada. Começaram a lavar o porco com rebos de granito do tamanho da palma da mão que abundavam por aqueles caminhos fora. Quanto mais observavam o olhar apalermado dos miúdos mais se riam. Muitos dos garotos não acharam muita graça a terem sido ludibriados e começaram a chorar e a proferir asneiras das grossas imitando o linguajar árduo e obsceno dos adultos.

Continuavam a rir os homens, riam agora algumas mulheres, riam muito os jovens que já tinham sido vítimas da mesma brincadeira estúpida e sádica. Mas o povo tem destas coisas, rir dos néscios, dos desgraçados e dos inocentes.

Quando o suíno ficou lavado, colocaram-no de barriga para cima mesmo a jeito de o matador o cortar com gestos certeiros e sábios. Primeiro foi-lhe retirada a pele da barriga junto com a carne gorda, depois foram sacadas as tripas e colocadas dentro de um cesto enorme protegido por um lençol de linho, com muito cuidado para não rebentarem. Mais logo serão lavadas no rio e com elas se fará todo o fumeiro necessário à alimentação da prole.

Em cima do couro liso do suíno, foi servido o sangue cozido ainda a fumegar, temperado com sal, alho e azeite. Foi ainda fornecido vinho para todos. Até para as crianças. Todos beberam. O vinho era bom e tinha a temida particularidade de emborrachar. Os homens gostavam de sentir-se bêbados. Ficavam mais descontraídos e assim a vida parecia-lhes mais suportável.

Depois de esventrado, o porco foi pendurado na trave mestra da adega e ali ficou à espera de enrijecer as carnes e de escorrer o pouco sangue que ainda lhe circulava nas veias. Dali a três dias ia ser desmanchado, o que era pretexto para tornar a convidar os amigos e para novamente se comer e se beber como Deus manda. Pelo menos é isso o que o povo diz. E o povo conhece bem Deus e os seus desmandos.

A rapaziada, cheia de força, encheu a bexiga do bicho e pôs-se a jogar a bola. Todos queriam ser o Eusébio. Mas não podiam porque o Abel, um órfão angolano que o Padre Zé tinha acolhido em sua casa durante dois anos até ir para o seminário, berrou para todos que o Pantera Negra só podia ser ele, pois era da mesma cor e tinha o mesmo jeito para jogar a bola. Os outros que se contentassem em ser o Torres, o Simões, o José Augusto, ou o Jaime Graça. O Eusébio barrosão fintava com tanta perícia que todos, em vez de jogar, se punham a olhar para ele como se de um artista de circo se tratasse. E a bola, de tão leve, teimava em pinchar sem rumo definido.

Mas foi o José quem se encarregou de terminar com o jogo que ainda mal tinha começado. Ou melhor, o seu pai coadjuvado pela Dona Rosa. Num lance mais arriscado, um dos jogadores, o filho de um cantoneiro com pouco jeito para a nobre arte do futebol, mas com forte inclinação para o mester da cacetada, avinagrado por o Abel lhe ter feito várias coxinhas seguidas e outras tantas interpoladas, num lance em que viu o José receber um passe de morte do Eusébio de Montalegre, foi-se-lhe às pernas e lesionou-o com gravidade. O guarda Ferreira, de cigarro em riste, apitou penalti. Mas foi interpelado pelo cantoneiro resmungando que aquilo nunca foi, nem nunca será, grande penalidade, que era notório que o pai protegia o filho e que, mais a mais, o futebol não é para maricas. “Tento na língua”, avisou o pai do José imbuído da sua dupla função de agente da autoridade e de juiz do assobio. E como o árbitro teimava na sua decisão de marcar pena máxima contra a equipa do filho, o cantoneiro elevou mais alto o seu desacordo e, após meter um pedaço de sangue cozido e pão à boca, e ainda depois de emborcar, de uma só vez, um copo de tinto, designado na gíria por penalti, foi-se caras ao árbitro e sentenciou: “Aqui pelo meu Coluna ninguém passa. Ele é dos valentes. O teu rapaz é que tem pouca força nas canetas. O futebol é para homens.” No momento, o Eusébio barrosão veio em defesa do seu companheiro de equipa e atacou: “O Simões pode não ser muito forte, mas finta como uma serpente.” “Cala-te preto”, avisou-o o pai do putativo Mário Coluna. “A tua opinião não é para aqui chamada.” “Ninguém chama preto ao meu afilhado preto. É uma ordem”, notificou o cabo Aníbal. “Ó Aníbal, só te pões ao lado dele porque é guarda. Que merda de valentia.” E ia para proferir mais qualquer coisa mas deteve-se porque a Dona Rosa pegou na bexiga cheia de ar e espetou-lhe o fio encolerizado da navalha que trazia sempre no bolso do avental e disse “acabou-se o jogo”. Todos se calaram no campo de futebol improvisado como se o árbitro tivesse decretado um minuto de silêncio em honra do reco morto. Como por milagre, a mulher do cabo Aníbal chegou-se à porta de casa para informar que o almoço estava na mesa. Todos esqueceram as desavenças e foram comer o cozido que cheirava estupendamente.

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