O Homem Sem Memória
37 – As nevadas tinham o dom de dulcificar os olhos castanhos do José. De Inverno, quando acordava, o seu primeiro instinto era abrir as portadas de madeira das janelas e pôr-se a observar os montes lá ao longe. Quando eles se vestiam com o xaile branco da neve rejubilava. Sabia que durante algumas horas o mundo – o mundo de todos, mas sobretudo o seu mundo – ia ficar mais limpo, mais uniforme, como se fosse gizado pela mão sábia de uma criança rigorosa. A neve tinha o condão de disfarçar por algum tempo a sujidade das ruas, a irregularidade dos caminhos, o tom pardacento das coberturas de colmo, a irregularidade tonal do vermelho velho das telhas das casas mais recentes, deixando virgens as passagens a percorrer, escondendo a bosta dos animais e as pedras velhas e gastas dos passeios. Tudo deixava de ter o aspecto degradante da pobreza.
O José deliciava-se a percorrer os caminhos antigos para neles deixar a sua pegada de astronauta evangélico. E dizia solenemente: este pode ser um pequeno passo para um rapaz humilde, mas tudo aponta para que seja um passo gigante em direcção ao futuro de um libertador de almas. E pisava o manto de neve com pegadas tão perfeitas e certeiras como as do próprio Deus no princípio do génesis.
Quando ia desbravar os mantos alvos das cercanias preocupava-se em nunca ir acompanhado. Os seus amigos, se os tinha, e isso para ele não era, nem nunca mais foi, um dado adquirido, ficavam sempre, e para sempre, excluídos dos gestos eloquentes da iniciação monocórdica da recriação do mundo. Foi desta maneira que assimilou a dura experiência do individualismo, que tantos problemas lhe viria a criar durante a sua vida de militante de causas perdidas.
Quando agora lê, deslumbrado, o Corto Maltese na Sibéria ou A casa Dourada de Samarcanda, o que lhe vem à memória são as manhãs esplendorosas da neve no barroso. A luz do sol reverberando nos finos cristais e o silêncio nostálgico da beleza branca irradiando sedução. Foi por causa da neve que se converteu ao Comunismo e abandonou de vez a Igreja. O filme Dr. Jivago conquistou-o para sempre. Apesar de delicadamente reaccionária, a película tocou-lhe pela fragilidade subversiva, pelo desengano humano, pela crença idiota na Rússia Soviética, como se uma serpente deixasse a sua pele e prodigalizasse em luzir ao sol as escamas refulgentes da repulsa. Entre lágrimas grossas e confusas, via emergir do filme, como bálsamo instigador de dor, sublimação e redenção, as canções de cordel que o punham num estado próximo da prostração. Tinha medo de chegar a casa e de a ver consumida pelo fogo redentor da blasfémia, ou pela diabolização contra-revolucionária.
O comunismo era uma doutrina muito mais totalitária e absorvente do que o cristianismo. Funcionava muito melhor como apelo instantâneo, como liturgia diária, como sublimação subversora, como mentira universal. E isso enchia-o de tesão. Provocava-lhe cãibras nas pernas. Deus ao pé de Marx era como um profeta menor. E o Lenine discursando enquanto farrapos de neve lhe acariciavam o boné e o sobretudo, ou Maiakowski declamando poesia na redentora Praça Vermelha vestida com o branco virginal da ideologia igualitária, era uma iconografia tão intensa como um ícone ortodoxo russo, um santo no altar da igreja, ou um felácio ao pé da lareira. Nos dias de neve, enquanto os adultos se queixavam do frio e da imobilidade, e os animais se remetiam ao mutismo estúpido dos seres desinseridos, as crianças enchiam a vila com a alegria contagiante dos seus trinados. E brincavam a atirar bolas de neve uns aos outros, ou faziam bonecos com narizes, olhos e bocas de pequenos pedaços de carvão que tiravam das lareiras. E mijavam em cima da neve fazendo pequenas cavernas de cor amarelada enquanto se riam uns dos outros por causa dos seus pénis que ficavam tão pequenos e enrugados como morrões de pesca.
José observava-os de longe condenando-lhes as brincadeiras porque os mais travessos, muitas vezes, escondiam pedras dentro das bolas de neve, o que provocava uma razia de cabeças rachadas sem pistoleiro identificado. Lançavam-se os mais brandos para o meio dos merouços de neve e ali eram abandonados ao choro e à lamentação. E faziam-se bolas de neve do tamanho de rodas de carro de bois que iam engrossando enquanto rebolavam pela rua do Padre Zé abaixo em contacto com a neve por onde passavam. Os rebolos de neve apenas se detinham na Portela, mesmo ao pé da porta do pela porcos, que era a nomeada do barbeiro que por ali tinha uma quitanda em tudo parecida a uma lura.