O Poema Infinito (22): Vigília
Que desespero me ergue diante de ti? Que dor é esta com que te escrevo? De onde vem esta onda escura que ilumina nos meus olhos a transparência dos teus? Encolho-me nas horas mortas e amo o reflexo protector da tua nudez que ainda dorme coberta pelo cicio das palavras doces pronunciadas irreversivelmente às primeiras horas da manhã. O tempo custa a passar porque está contaminado pela insónia. No entanto vejo tudo dilacerado pelo torpor do sangue. A Bela adormece agora junto ao Monstro. A minha vida sempre foi a de guardador de desilusões. Sempre a imaginar itinerários impossíveis, sempre a programar peregrinações, sempre a procurar paixões e travessias e fugas e desenhos místicos e palavras cabalísticas. Sempre a precisar de uma imobilidade transgressora. De novo o silêncio se sobrepõe à vulgaridade. De novo Deus revela a sua melancolia nos pássaros mortos de Inverno. De novo Deus é uma lâmina sagrada. De novo Deus é um fugitivo que com as suas mãos bondosas cria o vazio. E eu creio nos seus delírios de medo e nas suas visões apocalípticas. Deus é uma bomba de neutrões. Tudo está iluminado de uma escuridão ácida. E a noite torna a esconder-nos os sexos. E o sono é outra vez um deserto de mãos e de sonhos vagos e cristalizados. A tua língua é uma faísca desejosa e desejada. Invento o teu sorriso neste país de sal, nas suas cidades cansadas, nos seus desejos aflitos. Embalsamaram os meus heróis de banda desenhada e puseram os seus autores a tatuar negros e prostitutas árabes. Tudo se incendeia. Viajo agora rezando poemas pornográficos admiravelmente puros. Dizes: jamais o vento nos acordará. O teu corpo abriga a insónia do meu. Fingimos felicidade. Lá fora o Inverno veste-se de nevoeiro e de geada. Lá fora as horas tornam-se agressivas. Lá fora a luz dos candeeiros torna-se fixa. Digo-te: sinto-me triste na minha nudez pálida. Sonho com corpos vestidos de água afogados nas areias do deserto. Sonho com paisagens de lados invisíveis. Sonho com crianças azuis vestidas de brinquedos. É noite ainda e levanto-me extenuado. Vou dar um passeio para vigiar a morte. Depois olho para o rio calmo e decidido recorrer a ti. Olho-te eternamente pela primeira vez. Eu volto sempre para a tua simplicidade.