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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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19
Nov10

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

38 – Naquele Inverno antes do filho do guarda Ferreira e da Dona Rosa ingressar no Seminário, caíram geadas tão fortes que chegaram e sobraram para transformarem as águas do Cávado numa pista de patinagem. As vacas, os burros e as ovelhas dispensaram durante vários dias as pontes para atravessarem o rio. As crianças deleitaram-se a escorregar em cima do gelo como se vivessem no Pólo Norte. Caíam e levantavam-se com muita facilidade, brincavam desesperadamente pois sabiam que aquela grossa folha de vidro que cobria o rio não ia durar muito. Mas enquanto durou, a rapaziada deixou de brincar nos sítios habituais para se divertir apenas em cima do gelo. Deslizaram em cima de papelão, em cima de troncos ou sentados em trenós improvisados construídos com galhos de carvalho atados com cordas de sisal. E riam-se muito, com o sorriso histérico e alarve típico das crianças quando sofrem de felicidade excessiva. Os mais pobres luziam debaixo das suas narinas o monco gelado. Até nisso a pobreza é arreliadora. Sempre presente, sempre a ditar as suas leis, sempre a pôr um sinal na cara dos mais sujos. Mas o José reparou, pela primeira vez, que o sorriso das crianças pobres e a sua felicidade eram iguaizinhos aos dos outros meninos.

O frio era tamanho que a escola fechou e os trabalhos do campo foram adiados por causa da terra ter endurecido tanto que se tornou impossível trabalhá-la. O Sol brilhou com tal intensidade que as galinhas não se atreveram a sair dos galinheiros. Até os leitões da Dona Rosa se sentiram tontos de luz quando ela lhes abriu a porta da corte para virem apanhar um pouco de ar. Apesar do brilho, os raios de Sol não aqueciam. As mulheres começaram a ficar aflitas porque não tinham onde lavar a roupa. Os homens começaram a ficar inquietos porque não tinham nada que fazer a não ser comer e beber. O gado começou a impacientar-se porque ia para os lameiros e vinha de lá com fome pois a erva estava gelada. Apenas as crianças se sentiam felizes com tanto frio e tanto gelo. Mas, para sua tristeza, ao fim de uma semana o tempo amainou e tudo voltou ao normal. Os pequenos voltaram à tortura da escola, os homens ao trabalho escravo das terras, as mulheres ao incómodo de terem de lavar a roupa e de se verem aflitas para a secarem.

Nos dias mais soalheiros, o José aproveitava as tardes para ir brincar com os colegas. Jogava ao botão, ao berlinde, ao pião, ao espeto, aos índios, à trinca cevada, com as caricas, ao futebol e ao hóquei. Apreciava brincar aos índios, jogava razoavelmente ao hóquei, mas detestava o futebol. E havia razões para isso.

O futebol a sério começou a ser jogado depois de terem assaltado a loja do azeiteiro da Portela que vendia rebuçados embrulhados em cromos de futebol. Nesse dia muitos dos rapazes tinham conseguido juntar alguns tostões para comprar jogadores. Por isso se dirigiram à loja onde dois sacos de serapilheira cheios de rebuçados os esperavam à porta. Quando entraram no estabelecimento comercial notaram, com alguma surpresa, que ninguém se encontrava nesse momento nem dentro nem fora do balcão. Olharam uns para os outros e o Alcino disse de uma vez só e a cantar, porque era gago, “ó rapaziada toca a encher os bolsos e a chispar, o último a chegar a casa do alfaiate é paneleiro”. O Carlos Perneta, por causa das coisas, avisou: “o paneleiro é o Luís e…”, quando viu os colegas a correr como desalmados também se pôs a caminho aos saltinhos chegando em último a casa do alfaiate. Os outros encontravam-se já a contar os rebuçados que cada um conseguiu roubar e enfiar ao bolso. Quando todo o grupo se preparava para chamar ao Carlos aquilo que todos sabemos, ele preveniu-os: “Ao primeiro que se atrever a chamar-me paneleiro fodo-lhe os cornos”. Apesar de manco, o Carlos tinha a força de um porco selvagem, por isso ninguém se atreveu a proferir o insulto.

No meio dos rebuçados vieram alguns cromos premiados que deram direito a cinco cadernetas e a uma bola de futebol. E foi essa bola que deu início às desavenças no grupo das brincadeiras. Nestas coisas do futebol havia sempre dois que escolhiam as equipas. E nenhum deles era o José. Um era o Alcino e o outro era o Rui. O José nem sequer era o terceiro a ser escolhido para a equipa do Rui, que era sempre a mais fraca, era o último, e ainda por cima depois do Carlos. Ele não servia para ser atacante, médio ou defesa, por isso o punham sempre à baliza, mas mesmo aí era quase sempre substituído por ser piteiro.

Um dia em que tinha apanhado da mãe e do professor e novamente da mãe e ainda mais uma vez do professor, e que tinha sido, como habitualmente, o último a ser escolhido para as equipas de futebol, quando num lance se recusou a defender uma bola que necessitava de um mergulho, o José limitou-se unicamente a ficar a ver passar a bola rasteira por cima da lama. Foi então quando todos os companheiros de equipa lhe começaram a chamar aselha e outras coisas do género. Naquele momento, o primogénito do guarda Ferreira encheu-se de razões e, num golpe em tudo parecido com o da sua mãe na matança do porco do cabo Aníbal, foi-se à bola e desferiu-lhe golpes tão certeiros que a inutilizaram para sempre. O José ainda perguntou aos adversários qual deles estava disposto a fazer de Eusébio. Os colegas, surpresos com tão incaracterístico dislate, limitaram-se a substituir o guarda-redes e a deixarem-no ir embora com a navalha no bolso. Depois continuaram a jogar com a velhinha bola de borracha ordinária.

Muitas vezes também jogavam o que apelidavam de hóquei em patins por não conhecerem a denominação de hóquei em campo. O único hóquei era o que praticavam o Livramento e todos os outros heróis lusos em jogos que eram autênticas batalhas de Aljubarrota, a equipa nacional sobre patins de que ouviam o relato na rádio a pilhas, que também servia para ouvir os folhetins radiofónicos que quase sempre punham a Dona Rosa a chorar e o Branduras num pranto lastimoso.

Habitualmente jogavam no coberto da escola primária porque o seu chão era em cimento liso o que permitia que a pequena bola rolasse de forma aceitável. O pequeno esférico de borracha tocavam-no à força de trochos de couve-galega, que, apesar de irregulares e pouco elegantes, possuíam a singular qualidade de serem macios na hora de malhar com eles nas canelas, nas mãos e nas cabeças dos adversários.

Para brincarem aos índios, ele e os amigos fabricavam arcos e flechas com as varas de aço dos guarda-chuvas. Com uma fabricavam o arco unindo as duas pontas da vareta com um fio resistente para criarem tensão. Com a outra faziam a flecha que iam aguçar na enorme pedra de afiar onde o pai do Jorge, que era o principal matador de porcos da vila, punha fio no seu arsenal de facas, machadas, podões, foices e gadanhas. E a vareta ficava tão afiada que, quando lançada pelo fio tenso do arco, se espetava com facilidade na madeira das árvores, das portas e dos portões. Por vezes as brincadeiras eram tão sérias, ou tão maldosas, que chegavam a ferir com gravidade muitos dos rapazes e um que outro animal.

O Alcino foi alvejado na cabeça e chorou baba e ranho na hora de lhe tirarem o ferro cravado, ele que se gabava de ser incapaz de chorar fosse pelo que fosse, como disso eram exemplo as estóicas tareias que levava do seu pai sem dar um ai ou verter uma lágrima, por pequenina que fosse. O Carlos foi atingido na perna esquerda, ele que era manco de nascença da direita. Ao Rui atravessaram-lhe a mão esquerda com uma perícia de fazer inveja ao próprio Cavalo Louco que crivava de setas quase todos os cóbois que tinham o azar de aparecer nos livros de banda desenhada do Roque. Ao Luís espetaram-lhe a flecha de aço na nádega esquerda porque era um rapaz com forte tendência para a homossexualidade, era baixo, tinha voz fina, rosto de menina, um cu redondo, saliente e beijava os rapazes na boca com mais mestria do que a professora quando beijava o escrivão do Tribunal no lugar dos encontros amorosos da Mijareta. A flechada no traseiro do Luís foi tão vigorosa que desmaiou quando o Doutor Diogo lhe arrancou o ferro aguçado que tinha entrado uns bons dez centímetros na carne. Mas não foi por isso que deixou de ser tão amaneirado, de mandar piropos a todos os rapazes, de beijar o José sempre que o apanhava a jeito.

Munidos de toda a raiva de que foram capazes, os pais dos feridos queixaram-se à guarda, ao padre Zé, ao professor e aos progenitores dos meninos que não foram alvejados para que os seus índios barrosões fossem severamente castigados e as suas armas confiscadas, com a sugestão implícita de que se não os conseguiam educar os mandassem sem demora para uma casa de reclusão.

Está visto que o José apanhou que se fartou. Ele que não tinha feito nenhum disparo na direcção de qualquer companheiro, que não tinha agredido ninguém, tendo sim sido foi alvo da persistente paneleirice do Luís, que lhe deu um beijo enquanto o Alcino, o Carlos e o Rui o agarravam. Foi nessa altura que os outros rapazes dispararam as suas flechas e provocaram os ferimentos descritos.

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