722 - Pérolas e Diamantes: Pois!
Ando em passo lento pela minha cidade. De província. Eu provinciano me confesso. Passeio pelas ruas velhas dos velhos bairros que conheço mal. Agora tenho tempo para matar e até me sobra outro para deitar nos contentores do lixo. Já não espero por coisas que me precipitem. O meu passo já não aguentaria o ritmo dos acontecimentos. Lembro-me dos momentos passados na nossa pequena casa. Dos ecos. Dos rangidos. Dos rumores ou dos gritos da vizinhança. Tudo tinha o seu movimento próprio, que agora adequo à velocidade das minhas recordações. As histórias possuíam alguma continuidade. Tinham antecedentes. Tinham mesmo relações de causa e efeito, que definiam uma sequência, mas também possuíam as devidas redundâncias, exageros e omissões. O entusiasmo chegava-nos através da rádio ou da televisão. Que ainda era a preto e branco. Tínhamos então saudades do futuro. Agora temo-las do passado. A realidade dos factos passados está atualmente acessível nos livros. O problema maior no meio disto tudo são os idiotas da objetividade. Que, em boa verdade, não passam de gente repleta de subjetividade. Nesta minha cidade de província (eu provinciano me confesso), as ruas têm muita personalidade. Também as há malandrecas, sinistras, guerreiras e até beatas, propensas às orações e às bebedeiras de incenso ou vinho abençoado. Em algumas delas, as almas antigas contaminam os moradores. Algumas pertencem a heróis e outras a anti-heróis. Faz tudo parte do guião. Uma coisa confesso, quando a maioria das pessoas anda pelas ruas, eu estou em casa. E quando essa maioria recolhe ao domicílio, é quando eu resolvo ir dar o meu passeio. Por vezes acompanhado pela minha memória e pela máquina fotográfica. Leio então, de novo, as velhas ruas, a profundidade e a exibição da sua razão, a captação da sua eternidade, o pulsar da sua atividade. O esforço da preservação da sua história. A elegância do seu espírito. A sua justiça, a sua injustiça e a sua desgraça. Dependendo do ponto de vista histórico e político, claro está. A sua velha lentidão é a memória. A velocidade atual é a do esquecimento. O sentimento íntimo que em mim provocam as velhas ruas é indescritível. Elas partilham comigo as suas antigas reminiscências. Por vezes, sinto que tenho nuvens debaixo dos pés. E os meus olhos a acariciar as paredes, as portas, as janelas, as varandas e as pedras das calçadas. Nalgumas, o silêncio impõe-se como prestando homenagem aos gritos dos ultrajados. Faz parte do guião. Do delírio. Desta minha costela poética que não me deixa sossegado. Elas, as ruas, falam para mim na sua forma estática e eu falo para elas sem mover os lábios. Entendemo-nos às mil maravilhas. Muitas vezes, a noite, açambarca-nos a conversa. Eu não a interrompo porque isso seria rude, contrário à ordem natural das coisas espirituais. Impróprio. Algumas destas ruas foram abandonadas de forma despreocupada. O que diz muito de quem dirige a polis vai para muito tempo. Mas não contem comigo para especular longamente sobre isso. O que interessa é que no fundo gosto delas e da sua companhia. Isso é o que importa. Lembro-me de que no meio desta rua ficava a oficina de um sapateiro que costumava falar com alguns dos seus velhos conhecidos enquanto ia cozendo o calçado. Lembro-me de passar por lá, quando ia comprar um ou dois cigarros cabeça atada, olhar pela porta aberta que dava diretamente para a rua e avistar as inúmeras peças de calçado e os apetrechos do seu ofício que poderiam estar nas suas mãos ou em cima da mesa à espera de serem utilizados. À falta de companhia, o sapateiro costumava argumentar com as sovelas, os fios e até com as próprias escovas com que puxava o brilho ao calçado já pronto. Ao passar agora pela velha rua até os meus passos soam de maneira diferente. É muito provável que nada disto que aqui vos conto tenha importância. Mas. Mas gosto de, por vezes, dar solavancos à minha memória. Tenho medo que emperre de vez. É possível que perante as injustiças que grassam pelo país e por esse mundo fora, isto que vos conto pareça trivial. Mas. Esta cidade reúne todas as características para ser imaginária. Mas. Mas não é. Mas é como se fosse. Pois.