O Poema Infinito (27): saem as paisagens da água
Saem as paisagens da água vestidas com crianças azuis. É o tempo do espanto. As cidades explicam a luz na contemplação da chuva. O silêncio exibe a dilatação dos gritos. Os sexos navegam húmidos na cumplicidade das manhãs. A vida reproduz-se a uma velocidade incrível. Dormimos agora o sono das palavras possíveis. Reconstruímos a verdade das ilusões. A realidade é um momento. Os olhos imaginam pintores clássicos adorando os seus modelos. Van Gogh salta incendiado pelo amarelo das searas. Jesus incendeia o sangue dos peixes do Mar da Galileia. Deus estremece na transparência dos objectos. Os nossos corpos naufragam numa outra língua onde tudo é desejo. As paisagens atravessam agora as paredes da madrugada. Somos crianças em corpos de adultos. Por isso escrevo os textos possíveis onde anoto criteriosamente o caos da vida. Pássaros nitidamente cinematográficos desenham metáforas no céu. Agora os dias vêm carregados de inscrições premonitórias. As velhas cicatrizes saltam das promessas estonteantes. As noites antigas sofrem o aroma perturbante do vazio. Arde-me nos pés o caminho do regresso. Ao contrário de Ulisses, jamais encontrarei o caminho para Ítaca. A viagem termina antes de começar.