O Homem Sem Memória
43 – Mal chegou a casa, ainda vacilante nos seus passos frouxos, já depois de deixar os seus amigos no café a beber ainda o último copo de vinho, ordenou olhando na direcção da mulher: “Arranja a mala do José porque na segunda-feira vai para a colónia de férias.” “O quê?”, perguntou a Dona Rosa. “O quê?”, perguntou o José. “Já disse, prepara a mala do José porque na segunda-feira vai para a colónia de férias em Matosinhos.” “Mas...”, exclamou a Dona Rosa. “Mas...”, exclamou o José. “Não há mas nem meio mas”, avisou o guarda Ferreira, “como nunca mais foi à praia desde que viemos de Lisboa, vai agora antes de ingressar no seminário.” “Quem o inscreveu?”, perguntou a Dona Rosa. “Quem me inscreveu?”, perguntou o José. “Fui eu”, respondeu o guarda Ferreira com a autoridade necessária. “Afinal quem é que manda cá em casa?”, perguntou apreensivo o guarda Ferreira. O Leão ladrou no curral dando sinal de que se preparava mais uma batalha familiar. O Virtudes subiu as escadas para vir proteger as crianças. A Dona Rosa armou-se de varapau em riste e o José pegou no livro e foi para o quarto ler. Ou fazer que lia. Mas a guerra terminou ainda antes de começar. O guarda Ferreira serviu-se de vinho do garrafão, pegou numa linguiça, embrulhou-a numa folha de couve e colocou-a no meio das brasas. Um pouco a custo, assentou-se no escano. Depois deu um pontapé no gato e começou a falar sozinho. Entretanto a mulher tentou tirar nabos da púcara: “Quando foi que o inscreveste para a colónia de férias?” “Quando os meus colegas inscreveram os seus filhos.” “Mas não me disseste nada!” “Não te disse nada porque já sabia que ias dizer que não. Eu sei que o rapaz precisa de sol. Está magro como um cão.” “Vê lá como falas do teu filho. Mais magro estás tu. Também vais para a colónia de férias?” “Não me faças rir. Com estas flausinas da cor do leite ia ser um enchente de riso.” “Tu de calções de banho e eu de biquíni íamos ser o casal mais vistoso da praia.” “Lá isso íamos. De tão brancos ainda ofuscávamos o sol.” E riram-se os dois. Até o José se riu lá no quarto. “Não te rias dos teus pais que é feio”, gracejou o guarda Ferreira. Então a Dona Rosa começou a cantar a canção que agora passava muito na rádio: “Já arranjei muito bem / Tudo quanto convém / P'ra praia levar. / O pente, o espelho, o batom…” Ouvindo a dona a cantar, o Leão atreveu-se a subir as escadas e foi para ao pé dela pôr-se a ganir. Logo de seguida subiu o Virtudes e a rapaziada. Vendo que o ambiente se tinha composto, o José pousou o livro e veio para o escano. O pai deu-lhe um pouco da linguiça e disse-lhe para beber um golo de vinho da sua pichorra. Ele bebeu, mas a custo. Afinal já se estava a transformar num homem. Já fumava, já pinava, só lhe faltava mesmo começar a beber para ser um homem. O seu irmão João começou a rir-se naquele seu encantador trinado de menino feliz e riu tanto que deu um peido. Todos começaram a rir como tolos. E nunca mais paravam. E quanto mais se riam, mais vontade tinham de continuar a rir. Então o José, como quase sempre fazia, pegou no seu irmão João e começou a balançá-lo de um lado para o outro e a fazer-lhe cócegas na barriga com os lábios e o ar que expelia pela boca. Então o João, esgotado, no momento em que o José abria a boca para respirar depois de mais uma sopradela na barriga do irmão, mijou-lhe em cima com a naturalidade das crianças. Nesse momento o riso colectivo atingiu o clímax. Feliz, o Virtudes levantou-se de onde estava sentado, pegou no menino ao colo e deu-lhe o biberão de leite. A Dona Rosa, mais corada que um pimento, e como sabe que momentos destes não abundam na vida de um casal, lembrou aos meninos que estava na hora da deita. O José, ainda com o cabelo húmido depois de se ter ido lavar, juntou-se ao Virtudes e ambos ajudaram os irmãos a despir-se e a vestir as ceroulas e a camisa de dormir e contaram mais uma vez a meias a Lenda da Maria Mantela, história que tinha o apreciado dom de os acalmar. Depois adormeceram. O Virtudes ainda se entreteve a beber um copo e finalmente também foi embora. O guarda Ferreira, a inseparável pichorra, mais a Dona Rosa, continuaram a conversar noite dentro. O José, na cama, não conseguia dormir. Chegou mesmo a contar e recontar os jogadores que tinha repetidos e não conseguia trocar. Mas o sono não chegava. Ouviu o pai a bater a porta da rua e a dar duas voltas à chave na fechadura. Depois a Dona Rosa e o guarda Ferreira foram para a cama. De seguida ouviu qualquer coisa como “chega para cá o rabiosque que eu aqueço-to…” a que se seguiu “não sejas estouvado… sim… umm… sim… shh… que o José tem ouvidos de fuinha… anda lá Ferreira… não se me endireita… shh… sim… vá lá homem… queres que te… sim… shh… ummm… anda lá… não se em endireita… vá lá que eu ajudo… abre mais um pouco as… shh… umm… força… agora… shh… eu faço-te mais umas festinhas… não consigo… é do ciga… caralho…