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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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31
Dez10

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

44 – Ainda mal se viam os primeiros raios de sol e já o Artur, o filho mais novo de um colega do guarda Ferreira, subia na burra a rua que conduzia ao largo onde costumavam estacionar as carreiras com destino a Chaves e a Braga. O pai e a mãe iam a pé. A mala seguia em cima do pescoço da jumenta tenteada pelas mãos do Artur.

O guarda Ferreira e a Dona Rosa, com o João ao colo, acompanharam o José também a penates. Como não tinham burro, o José foi no macho que o cabo Aníbal lhes emprestou. Um pouco mais atrás seguiam o Virtudes, que carregava o malote por excesso de zelo, e o Leão que abanava a cauda de contentamento. A tomar conta da criançada lá em casa ficou a irmã do Alcino.

O José, ao contrário do seu colega Artur, ia triste. Nunca se tinha aventurado a passar quinze dias fora da companhia da mãe, do pai, dos irmãos e dos amigos. Ia ser duro. A mãe olhava para ele e choramingava. O pai olhava para ele e sorria. O Virtudes olhava para ele e assobiava. O Leão olhava para ele, abanava a cauda e ladrava. O João olhava para ele e cantava a canção da “galinha põe o ovo” com a ajuda da mãe. O Artur olhava para o José e gozava. O pai do Artur olhava para a mãe do Artur e depois para o ar fungoso do José e ainda para o ar alegre do seu filho e gozava. O macho olhava para a burra e ruminava.

Fizeram-se as despedidas. A Dona Rosa continuou a choramingar e a dar conselhos ao filho sobre os diversos cuidados a ter com os rufias que se aproveitam destas ocasiões para humilhar e roubar os meninos mais inocentes e bem-educados. O guarda Ferreira acendeu um cigarro, deu um beijo envergonhado e mais algum dinheiro ao filho e abalou para o posto a assobiar o hino do Porto; o José deu um beijo à mãe, fez uma festa ao cão e outra ao macho, e entrou para a camioneta. O Virtudes pegou no irmão mais novo do José e também entrou na carreira. Ia fazer o desmame do João a Chaves, pois o raio do garoto não havia maneira de deixar em paz a teta da mãe. Já tinham experimentado a técnica de pôr malagueta no bico do seio da Dona Rosa, mas o malandro, depois de chorar baba e ranho, voltava ao mesmo. E como o leite e as forças já iam faltando à mãe, o Virtudes lembrou-se de o levar três dias a Chaves para dessa forma violenta abandonar definitivamente o vício da teta. É que parecia mal um menino tão crescido agarrar-se à mama da mãe como se fosse um cordeiro faminto. Aquilo era doentio. Além disso trilhava-a com os dentes, inflamando-lhe os mamilos. O João, quando viu que a mãe continuava a chorar e não entrava na camioneta pôs-se a gritar. Mas o Virtudes deu-lhe uma guloseima, acariciou-o, começou a galhofar e o João calou-se. O José sentou-se ao lado do amigo e do irmão e tentou pensar numa coisa alegre. Pensou no mar e no sol. Já sentia saudades. Desde que abalara de Lisboa nunca mais tinha ido à praia. Não é que gostasse muito da água. Tinha-lhe até medo.

Isso aconteceu porque uma vez uma senhora sueca, tentando ser simpática, pegou-o ao colo e levou-o para dentro de água para o ensinar a nadar. Mas ele atrapalhou-se e começou a chorar. Como a senhora não se apercebeu, continuou a praticar distintos exercícios de mergulho e lançamento o que lhe provocou uma aflição muito próxima do pânico. Depois desse dia, mal alguém o aproximava da margem do Tejo ou da água do mar, começava a tremer e a chorar. O máximo que conseguia fazer era pôr-se no areal onde as ondas iam morrer e deixar que aquele nico de água lhe banhasse as pernas. Mesmo assim arrepiava-se e contraía todos os músculos do corpo.

Chegados a Chaves, despediu-se do Virtudes e do irmão e, na companhia do Artur, já um rapaz experimentado nestas andanças, rumou ao posto da GNR onde foi integrado no grupo que, sob a supervisão de um colega do pai, se dirigiu ao comboio que os levaria ao Porto.

Aí pernoitaram numa das casernas do posto central. Foi uma noite terrível para o José, mas divertidíssima para o Artur e os demais rapazes que estavam habituados a estas aventuras. Mal se fechou a porta e se apagaram as luzes, estabeleceu-se uma batalha de almofadas que se prolongou por muito tempo. O José e os demais caloiros tornaram-se nos alvos da chacota e da fúria dos malandrins. Os caloiros não dormiram nada porque mal fechavam os olhos eram logo vítimas de mais um assalto de almofadas. Não é que doesse muito, mas moía. Sobretudo a paciência. O José chorou que se fartou.

O Artur nem uma única vez o defendeu. O filho da puta. Era até o que mais se empenhava em castigá-lo. Aquele cabrão sádico. Não perdia por esperar. Quando fosse padre não o absolveria de nenhum pecado. E, dessa maneira, ia para o inferno, com toda a certeza. E isso era o menos, pois estava determinado a pedir ao Alcino para lhe armarem uma emboscada e lhe fazerem por trás o que fizeram à irmã pela frente. E não iam cobrar nada pelo serviço. Era-lhe muito bem feito. Ao filho da puta!

Razão tinha a Dona Rosa quando apelidava a mãe do Artur de puta relaxada e o pai de corno manso. Ao princípio custava-lhe ouvir a mãe dizer: “Sempre tão pintada, tão asseada, tão folgada, a puta do sargento Pires. E o corno manso do marido, em troca, tem sempre os serviços mais leves. Mal sai do posto. É ele o correio do sargento. É ele quem recebe dos contrabandistas a paga pela distribuição das patrulhas e pela falta de vigilância nos caminhos que vão dar à fronteira. São meia dúzia os que recebem o grosso da maquia. Os outros contentam-se com as migalhas. E tu, Ferreira, nem pareces meu marido. Deixares-te endrominar pelo sargento e pelo corno manso. Se fosse comigo, quem os fodia era eu. Ou me pagavam convenientemente ou denunciava-os. Não se ficavam a rir. Ai não ficavam não.”

Agora dava-lhe razão. O Artur só podia ser filho de uma puta e de um corno manso.

Ficou cheio de medo quando o Artur, no meio da galhofa, apontando para ele e virando-se para o grupo de mafarricos, vociferou: “Lá na praia temos de lhe ir ao cu”. Todos se riram como se isso fosse normal. Ele pensou nas palavras da mãe: “Nunca te afastes dos monitores.”

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