Fobias
J. veio na minha direcção balouçando como um barco soprado pelo vento leste, sentou-se a meu lado rindo-se e sabendo da minha pogonofobia (medo das barbas compridas, daí o não gostar do Pai Natal, de temer Marx e de abominar Maomé) deu-me a boa nova de que tinha rapado a sua. Podia ser agora muito bem-vindo à nossa mesa de café.
Cá no grupo todos sofremos de afecções mais ou menos ridículas exprimidas por palavras derivadas do grego que tentam etiquetar os medos irracionais. Somos almas sensíveis.
O R. sofre de antofobia (medo das flores), por isso não vai a casamentos, baptizados, aniversários, comícios do PS, procissões, funerais e é alérgico às comemorações do 25 de Abril, dia em que nunca sai à rua, “nem morto”, como faz questão de afirmar.
O C. sofre de deipnofobia (medo dos jantares de festa), por isso nunca ceia no Natal, não almoça no dia de Ano Novo, não vai a casamentos nem a baptizados, não alinha nos jantares do 25 de Abril e já se deixou da vida política activa porque actualmente todas as acções partidárias se resumem a jantares-comício, onde se come mal e se evita falar de política sem ser na forma de stand-up comedy.
O N. sofre de tridecafobia (medo do número treze) por isso não joga no totobola e ausenta-se do país todos os treze de Maio, esteja cá o Papa ou até Deus. Diz que é por isso que é ateu. Que Nossa Senhora ter aparecido a treze de Maio deitou tudo a perder. Daí as pragas com que o nosso país vem sendo castigado desde essa altura.
Eu sofro também de iofobia (medo da ferrugem), por isso não vou à aldeia por causa dos portões, das portas e das janelas de ferro, detesto carros velhos e, sobretudo, abomino as feiras das velharias onde se vêem pessoas loucas a comprar por bom dinheiro objectos de ferro completamente enferrujados. De todas as afecções, esta parece-me a menos ridícula, a menos irracional, pois a ferrugem é a prova provada do fracasso da obra humana. O desígnio, a aposta, a experiência, tudo fracassa, tudo desiste. E ninguém tem a coragem, ou a vontade, de limpar seja o que for. Já ninguém esfrega garfos, colheres ou facas, deitam-se fora.
Agora que olho para a minha tertúlia com olhos de ver, reparo que muita coisa se alterou. E para pior. É o tempo. A ferrugem. Primeiro, quando nos sentávamos à roda de uma mesa falávamos de política, de futebol e de sexo. Depois passámos a falar de futebol, de sexo e de política. Mais para diante começámos a falar de futebol, de sexo e de comida. Posteriormente optámos apenas pelo sexo e pela comida. Agora só falamos seriamente de comida, pois consideramos as relações sexuais o cúmulo da frivolidade. O nosso grupo é, actualmente, a obra-prima do tédio e da vacuidade. Como a presidência da república.
A princípio dava gosto reunirmo-nos. Era até um acto de liberdade. Disputávamos um campeonato de opiniões e crenças que, aparentemente irreconciliáveis, possuíam a virtude de nos divertir. Cultivávamos mesmo um certo humor sardónico e cínico que nos punha a falar apaixonadamente mesmo sendo extremamente insinceros. Nada do que é português nos é estranho.
Por exemplo, lembro-me bem do dia em que o C., depois de um divórcio triste, nos apresentou a sua nova companheira, moça atraente que já tinha dado umas voltas com o R. Mal o par virou costas, o N. disse: “Aí está o exemplo de que mulheres obviamente atraentes por vezes acabam por se fartar dos homens obviamente atraentes, pondo de parte as suas qualidades, as suas expectativas, os seus corações indistintos. É dessa forma que a história se inverte, a princesa beija o sapo e aprecia.”
Eu reagi de imediato dizendo que era uma infâmia falar do C. nas suas costas.
O C. podia ser aquilo que consideramos fisicamente feio, mas era lindo por dentro. Era o tipo de pessoa que chama a atenção do empregado para o facto de se ter prejudicado no troco, o tipo de cavalheiro que cede o lugar às grávidas, às crianças, aos velhos e aos enfermos; o tipo de homem – e nisso é muito parecido comigo - que nunca lê primeiro a última página de um romance, preferindo chegar ao fim por meios leais.
O N. é um tipo de pessoa que se realiza em ser do contra. A sua máxima é: “Se é mau, não gosto. Mas se é bom… detesto.”
Eu, para não dizerem que só falo dos meus amigos, vou definir-me através das palavras da minha queria madrinha. Dizia ela, com algum exagero, convenhamos: “O meu afilhado possui uma elevada sensibilidade reforçada por uma inteligência excepcional. Mas quanto mais inteligente se é mais deprimido se está condenado a ser. Por isso podia muito bem ser protagonista de um romance de Lobo Antunes.”
Eu continuo a achar que a minha madrinha é uma fada boa, uma mulher distinta. Sei-o porque, segundo as palavras de Mandelstam, um homem ou uma mulher se medem pela maneira como reagem à poesia.
PS – Receitas para ajudar a combater a crise.
Linguini com salmão fumado e rúcula: Ingredientes – 365 gramas de linguini seco; 2 colheres normais de azeite; 1 dente de alho muito bem picado, 117 gramas de salmão fumado cortado em tirinhas; 58,3 gramas de rúcula; sal e pimenta, e ainda metades de limão para guarnecer.
Confecção – Leve a lume médio uma panela com água temperada com sal e quando estiver a ferver, introduza a massa. Espere que volte a levantar fervura e deixe cozer durante 9 a 11 minutos, ou até que a massa fique tenra mas resistente quando a trincar. Imediatamente antes do final da cozedura, aqueça o azeite num tacho de fundo espesso, junte o alho e frite, em lume brando, mexendo, mexendo sempre, durante 1 minuto e 10 segundos. Não deixe que o alho fique escuro senão amarga. Junte o salmão e a rúcula. Tempere com sal e pimenta e deixe cozer, mexendo, mexendo sempre, durante 1 minuto e 12 segundos. Retire o tacho do lume. De seguida escorra a massa e transfira-a para uma travessa aquecida. Junte agora a mistura de salmão fumado e rúcula, envolva-a ligeiramente e sirva-a guarnecida com as metades de limão.