O Poema Infinito (32): hora de ponta
Eu voltei a cair em ti. Sei-o agora: tu és a minha autobiografia. Vieste numa manhã clara e fria trazer-me a lembrança do adeus. O desejo colhia violetas de algodão numeradas. Os candeeiros sobrevoavam a espessura alucinada. Começaram a trepidar-me dentro da cabeça os gestos densos da noite peregrina. As manchas do dia começaram a invadir o ecrã destruindo as arcas do medo. O filme do entardecer saltou repentinamente sobre as avenidas onde os pássaros desnecessários voavam curvados sobre gravuras chinesas. Os eunucos acariciam agora o sexo dos anjos. Lá fora as crianças mastigam intensamente histórias egocêntricas. As casas transformam-se em gaiolas aromáticas. Todas as camas estão infestadas de Brancas-de-Neve. O Gato das Botas dança numa pista de circo. Cossacos bêbedos violam lenines cheios de sono. As aves, no seu peso diluído pelas sombras, pousam à entrada dos templos de papel iluminados pelas figueiras do mal. E a água desce magicamente da montanha impregnando-nos as gargantas de seiva. Não sinto as tuas mãos nas minhas mãos aflitas. Não sinto o bater de asas do prazer. A noite sangra nas páginas lisas dos missais. Dormem agora as paisagens na ilusão do alento brilhante das árvores. Os deuses perdem-se na memória do tempo. Mulheres sexualmente nuas desequilibram-se nos seus corpos húmidos. Rodo bruscamente a cabeça tentando apanhar a tua imagem. As coisas deliciosas estão sempre sufocadas pelo excesso de ar. Os teus dedos afogam a minha sensualidade. É esta uma espécie de felicidade incerta. Os teus olhos amanhecem rapidíssimos experimentando boleros esfuziantes. Escrevo textos para revelar os meus segredos íntimos. E sinto cada vez mais a efemeridade autofágica do desejo. As horas de espera enlouquecem as ruas e a solidão. É hora de ponta na minha cabeça.