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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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27
Mai11

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

65 – A família Ferreira alugou uma casa no lugar da Cruz Santa, bem longe do centro de Névoa. O dinheiro e uma certa avareza da Dona Rosa não deram para mais. Era uma habitação pequenina, nova e geminada. Na outra vivia um casal sem filhos, ele polícia e ela empregada de limpeza. A casa possuía dois quartos, uma cozinha, uma sala e uma casa de banho exterior com serventia para as duas famílias. Os penicos passaram a ter muito menos usança, somente durante as noites frias de Inverno é que se recorria a eles. A casa de banho tinha ainda um chuveiro que ninguém utilizava por não ter água quente. Na parte da frente, cada família tinha um pedaço de terra que podia amanhar para colher batatas temporãs, couves, cenouras, cebolas, tomates, ervilhas e favas. Não existia cortelho para os porcos, nem espaço para os coelhos e as galinhas. A vida passou, por isso mesmo, a ser um pouco mais difícil. Compravam o reco já cevado e matavam-no à pressa, pedindo a vizinhos e amigos que curassem as pás, os presuntos e o fumeiro nas suas cozinhas. O resto da carne compravam-na fiado no talho, onde tinham conta aberta. 

O bairro, conhecido como o do francês, era constituído por três edifícios murados, todos iguais, onde viviam seis famílias, incluindo a do senhorio, um ex-emigrante proprietário de uma sapataria a meio da Rua Direita, em Névoa. Para alegrar os dias de semana, era frequente ouvir-se música de baile proveniente dos ensaios da Orquestra Pereira, um conjunto constituído por todos os cinco elementos da família do mesmo nome. A mãe cantava, o pai tocava guitarra eléctrica e fazia os coros, os três filhos tocavam respectivamente bateria, saxofone e viola baixo. Tocavam bonitos tuístes, chá-chá-chás, boleros, valsas, passodobles, tangos e um que outro rock mais tradicional.

O José passava muitos fins-de-semana em casa, acordando cedo para, antes de ir à missa, ler muitos e bons romances. Alguns de amor, outros de ódio e ainda outros de temática social e política. A sua mãe avisava-o constantemente que tanta leitura ainda havia de o pôr maluco. Ele limitava-se a ler e, quando os olhos lhe doíam e os ouvidos começavam a encher-se de ruídos estranhos, levantava-se da cama, que também era sofá, e ia passear para o monte. Algumas raparigas mais atrevidas seguiam-lhe os passos e mandavam-lhe piropos. As mais atrevidas exibiam-lhe as vergonhas e prometiam dar-lhas a troco de benzeduras e uma que outra nota de vinte para ajudar na compra de roupa bonita. Ele ria-se e mandava-as embora. Dizia-lhes para se manterem castas, senão não chegariam a casar. Elas diziam que não queriam casar-se porque por ali só havia torgueiros, trolhas e bêbados. “Eles também são filhos de Deus”, avisava-as. Elas retorquiam-lhe que a ser filhos de alguma coisa o seriam da puta que os pariu e do próprio demónio. Os homens do bairro brutalizavam as mulheres, enchiam-nas de filhos e afogavam-se em álcool.

A sua educação cristã e as suas convicções marxistas levaram-no a conviver com os jovens operários, estudantes e empregados de balcão. Ia às tabernas, aos bailes e ao cinema. Jogava ao sapo, à sueca, ao dominó. Lia-lhes partes da bíblia, poemas revolucionários, cantava-lhes canções de protesto. Eles toleravam-no, por vezes elogiavam-no e outras vezes, já muito bebidos e fumados, insultavam-no. O José não lhes levava a mal. Compreendia-os. Nas férias grandes chegou a trabalhar nas obras com muitos deles. Peneirava a areia, juntava-lhe cimento e água, fazia a massa com que os trolhas de primeira classe cimentavam as paredes. Ia-lhes buscar as cervejas. Escrevia cartas de amor aos analfabetos, explicava-lhes muitos dos filmes, ensinava-os a ler, dava-lhes conselhos como deviam falar com as namoradas, como deviam vestir, andar, falar e até comer. Foi com eles às putas a Feces e não se deitou com nenhuma. Eles ficaram de boca aberta. Não era por andar a estudar para padre que se comportou dessa maneira. Simplesmente não era capaz de ter relações sexuais com uma mulher a quem tinha de pagar. Dizia, e cumpria, que só conseguia ir para a cama com uma mulher por amor. Eles explicavam-lhe: “Mas esse é o trabalho destas mulheres, o seu sustento. Se não as foderes elas não ganham dinheiro. E sem dinheiro não podem sobreviver. “Não consigo”, desculpava-se. Mas, por compromisso com a razão e a condição humanas, sempre que ia a um prostíbulo, pagava os serviços a uma das mulheres e sentava-se a falar com ela. Muitas vezes, um que outro companheiro de farra, se não fosse muito pedir, sugeria-lhe a possibilidade de poder aproveitar a sua puta para mais uma foda. E como o serviço já estava pago, era pecado deitar fora o cibo. Nem uma única vez ele autorizou que a sua puta fosse utilizada por outro. Ele dizia-lhes lindas palavras, falava-lhes ao coração, condoía-se da sua condição, falava-lhes na possibilidade de um futuro melhor. Elas achavam-lhe graça, sorriam-lhe, beijavam-no ternamente na face, davam gritinhos de prazer e pediam-lhe namoro e segredavam-lhe ao ouvido: “Leva-me daqui para fora. Faz de mim tua mulher.” Ele sorria e dizia que não podia ter mulher que fosse sua. O que era mentira, como sabemos. Mas mentir por piedade não é pecado que aflija Deus. 

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