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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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24
Jun11

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

69 – Aquele foi o Verão do seu contentamento. Acordava cedo e lia, quando podia, ou então, quando se deitava tarde, dormia mais um pouco para arranjar forças para brincar. Havia mesmo manhãs em que se levantava com as galinhas e ia para o seu forte, que era o terraço que servia de telhado à casa de banho, esperar pelo nascer do sol. Ali, com o seu chapéu à Daniel Boone, chorava de emoção quando via os primeiros raios de sol expandirem-se por cima do cume das montanhas. Este exercício de vigilância territorial era repetido ao pôr-do-sol, quando o José endireitava o seu chapéu de pele de raposa e entoava com a boca, transformada em cornetim, o hino do recolher dos seus féis exércitos imaginários.

O estranho chapéu à Daniel Boone resultou de uma investida solitária ao monte em busca de inimigos, que tanto podiam ser índios, como cowboys renegados, ou rebeldes sulistas. Numa dessas incursões deparou-se com uma raposa ferida de morte. Assinalou o local e deixou o animal entregue à sua sorte. Podia ter sido ele a dar-lhe o golpe de misericórdia, mas deixou que fosse o tempo a finalizar a tarefa. O José não conseguia matar nem uma mosca, quanto mais um animal belo e agonizante como aquele.

Passou lá no outro dia e encontrou, como esperava, o corpo inerte e frio do animal. Trouxe-o para casa e pediu a um amigo peleiro que o esfolasse e curtisse a pele. Depois levou-a a um alfaiate para dela fazer um boné com base numa fotografia do Daniel Boone publicada numa revista.

Passou a ser o herói do bairro. O ídolo das raparigas, que namoriscava sem se comprometer com nenhuma. Muitos dos seus amigos achavam-lhe graça e, de certa forma, admiravam a sua propensão para a fantasia. Via-se que não era como os outros. Vivia num mundo muito próprio. Alimentava-se de mitos, sonhos e conquistas.

Arranjou um amigo tão estouvado e tão solitário como ele que tinha um nome feminino. Todas as tardes partiam à desfilada, nos seus cavalos loucos, para o meio dos montes onde construíram cabanas de pinheiros e giestas, onde assavam as galinhas e os láparos caçados nas capoeiras e nas coelheiras dos seus familiares, onde bebiam os licores de laranja e anis preparados à base de concentrado adquirido nas farmácias, ao qual misturavam aguardente bagaceira e uma boa dose de açúcar. Fumavam cigarros feitos de barbas de milho seco ou, quando encontravam uma tribo de índios amiga, fumavam fortes cachimbadas de ervas aromáticas, até ficarem atordoados, à volta da fogueira e bebiam a meias, de garrafas especiais, os licores balsâmicos e açucarados.

Pescavam nos rios bogas, escalos, panjorcas, percas-sol, pimpões, trutas mariscas e enguias que abriam e secavam ao sol, ou davam aos gatos, ou se atreviam a assá-las num bom braseiro, ou então vendiam o peixe a algumas famílias com posses, e o que ainda sobrava entregavam-no ao asilo dos velhinhos, com a nítida intenção de alimentar os mais necessitados, mas o peixe do rio ia sempre parar ao prato do senhor abade, e de uma ou outra freira mais próxima da influência eucarística do guia espiritual, numa boa sertã recheada de suculentas postas fritas com cebola, tomate e pimento, que acompanhava com batata cozida, broa centeia e vinho branco de uma colheita privada de Arcossó.

O Graça – assim se chamava o seu amigo – vivia com a avó, pois a sua mãe tinha morrido vomitando os bofes devido a uma intoxicação de gás provocada por uma fuga de um esquentador instalado dentro da casa de banho. O seu pai, um sargento do exército português condecorado pela sua coragem em combate em comissões de serviço nas províncias ultramarinas (e coleccionador de orelhas e dedos de turras), vivia agora um segundo casamento onde não cabia o seu primogénito. Houve ainda uma tentativa que correu muito mal, pois um dia o Graça insultou a sua madrasta dizendo-lhe obscenidades e mostrando-lhe o pénis de forma ostensiva. Esta era a sua forma de marcar terreno em relação às fêmeas. Quando o irritavam, ou o provocavam, ou olhavam muito para ele, de imediato baixava as calças e as cuecas e ostentava o falo como se fosse um troféu de caça.

Nesse mesmo dia, quando o pai chegou a casa, tratou de o amansar com um chicote (ó ironia das ironias) feito de pénis de boi que o deixou às portas da morte. Dali foi para o hospital em estado de coma. Quando recuperou, passados alguns dias, foi entregue aos cuidados da sua avó materna, que lhe dedicava um carinho especial e que era recíproco.

Um dia, o José e o Graça, resolveram envolver-se numa luta feroz contra um bando de escoteiros mirins comandados por um meia leca de calções e chapéu colonial emprestado pelo seu pai, que era soldado da GNR. Ambos e dois lhe tinham uma raiva muito particular. Sobretudo porque tinha a mania que era bom, que se sabia impor e arregimentar soldados para o seu pelotão. Verdade é que os tratava com uma varinha de salgueiro e os vigiava com monóculo de plástico de fabrico próprio, numa tentativa de imitar o seu herói preferido, o General Spínola. O zelo era tanto, que, por vezes, à falta de animal para cavalgar, montava no lombo de um dos seus apaniguados, que tinha uma queda especial para fazer de burro. Como também não tinha cães, socorria-se de outros dois rapazes que eram especialmente dotados para rosnar, ladrar, seguir pistas, mijar junto dos troncos das árvores alçando a perna, e morder a barriga das pernas do inimigo.

O pai deste garboso capitão mirim era conhecido por, usando o seu carisma e prestígio de GNR zeloso e autuador, pois passava multas por tudo e por nada, conseguir alimentar a família à custa do povo temerário que ele patrulhava na companhia de outro imbecil do mesmo calibre. Sempre que as batatas, as cebolas, as couves, os grelos, as galinhas, os coelhos, um que outro cabrito ou cordeiro para os dias festivos, um que outro leitão para cevar lá em casa, atingiam o ponto crítico na despensa ou na corte, e o fumeiro desaparecia na arca do centeio, o mirim sénior fazia-se encontrado com determinado agricultor e encomendava-lhe aquilo que lhe faltava a troco de um próximo pagamento. Quando recebesse o vencimento prometia pagar, até com juros. Lá prometer prometia, mas nunca cumpria. Os pobres homens tinham-lhe medo e metiam-se em copas. Algum, menos avisado, a princípio ainda teve a ousadia de ir pedir-lhe o que lhe era devido. Ele prometeu-lhe, mais uma vez, ir pagar-lhe no dia seguinte. E cumpriu com o prometido. Mas, imediatamente a ter feito o pagamento, inspeccionou tudo o que tinha a inspeccionar, desde a licença e as vacinas dos cães, o tamanho da ponta metálica da aguilhada, as chedas dos carros de bois, a licença e porte de armas da caçadeira, as vacinas dos bovinos, a permissão de abate dos cabritos e dos porcos, a autorização para os galináceos que andavam pelas eiras e pelos caminhos a invadir propriedade privada, a autorização para a venda dos restantes animais, das batatas e dos feijões, a licença das navalhas e dos isqueiros espanhóis, enfim tudo o que podia ser escrutinado foi-o duplamente e o dinheiro que tinha recebido nem sequer deu para um décimo da multa que se viu obrigado a pagar ao Estado. Foi lição definitiva. Todos vendiam ao GNR a troco de um sorriso e de uma promessa de pagamento que era de imediato esquecida.  

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