A utilidade das algemas e tagine de peixe à marroquina
Um meu amigo que está lá para baixo e que já não via há muito, muito tempo, diz que inventou (reciclou, adaptou) uma nova função para as algemas. De facto, o L. sempre teve uma fixação por algemas, daí acalentar, desde a infância, o sonho de ser polícia. É funcionário de acção educativa numa escola secundária do litoral sul. Do mal o menos.
“Tu sabes bem”, disse ele olhando para mim, mesmo parecendo o contrário, com os seus olhos estrábicos, “que as algemas e as correntes possuem virtualidades e funções na vida moderna que os seus inventores muito possivelmente não terão ponderado na época recuada em que foram inventadas e onde tudo era mais simples.”
Tornando a olhar para mim, deduzi eu, e não para o poste que estava ao meu lado, como parecia, pois ninguém fala para um poste estando sóbrio, continuou a sua dissertação: “Se eu fosse responsável autárquico pela segurança na zona onde habito, mandava instalar vários conjuntos de algemas e correntes nas paredes dos edifícios públicos. Quando os moradores se cansassem da televisão e de ir passear o cão, podiam acorrentar-se uns aos outros como exercício de treino. Passaria a ser uma forma de convívio interactivo entre vizinhos. Estou em crer que todos adorariam.”
Eu olhei para o L., ou melhor para os olhos do L. que nesse momento estavam a fixar com muito empenho uma velha fechadura de uma porta da Rua da Cadeia, e limitei-me a abanar a cabeça em sinal de concordância. Ele sorriu para a fechadura e continuou: “As mulheres, transbordando de fantasias juvenis, ou sexuais, diriam: «Esta noite o meu marido acorrentou-me. Senti-me nas nuvens. E o teu?» (Pausa para salivar.)
“E as crianças, quando saíssem da escola, iriam logo a correr para casa, onde os avós, ou a criada, estariam à sua espera para as acorrentar. Esse gesto singelo fazia mais pelo desenvolvimento da sua imaginação do que todas as aulas de Educação Visual durante um ano lectivo, além de as ajudar a aumentar a cultura geral que lhes é sonegada pela televisão, e reduziria consideravelmente a incidência da delinquência juvenil. Quando o pai, ou a mãe, ou ambos, chegassem a casa, toda a família escolheria o eleito do dia para ser acorrentado como prémio pelo facto de alguém em casa ter o privilégio de possuir um posto de trabalho, mesmo que a produtividade continuasse em níveis absolutamente medíocres. Mas não se pode ter tudo. Não é verdade, caro amigo?”, interrogou-me o L. olhando para a árvore que abanava as folhas sobre o meu lado direito.
Demos mais uns quantos passos, enquanto ele ganhava fôlego para mais uma investida. “Os nossos parentes mais idosos que causassem problemas seriam acorrentados na garagem. Apenas se lhes soltavam as mãos uma vez por mês para assinarem os cheques da segurança social. Como vês”, disse ele sorrindo para uma vaso colocado no parapeito de uma janela, “as algemas e as correntes poderiam ajudar a construir uma vida melhor para todos nós.”
Eu pus-me a olhar para ele que continuava com os olhos fixos no vaso e disse-lhe: “És um pândego”, com vontade de lhe dizer outra coisa. Cumprimentei-o mais uma vez, em sinal de despedida, e fui-me embora.
O L. nunca foi para mim uma pessoa querida. De facto, o pobre rapaz, por causa do seu olhar, e de outros atributos que agora não vêm ao caso, foi sempre um solitário. E continua. Lembro-me perfeitamente de uma vez no Liceu, quando estávamos no laboratório de química, o preparado do L. explodir, queimando-lhe as sobrancelhas e pregando a todos um susto de morte. O choque e o pânico fizeram com que ele molhasse as calças, mas nenhum de nós lhe ligou qualquer importância, nem mesmo o professor, que o detestava por explosões ocorridas nos vários anos de repetência. Durante o resto do dia andou pelo Liceu encharcado, e todos nós fizemos de conta que era invisível. Mas o L. era apenas estrábico.
Ganhei-lhe algum carinho porque uma vez me confessou que não podia ter filhos. Eu, então, perguntei-lhe, pesaroso, a razão de tamanha desventura. Ele, fixando um quadrado azul da pintura do Nadir Afonso que está na parede do Sport, deu-me uma resposta que ainda hoje me fascina e enternece: “Sou como Portugal, tenho os testículos subdesenvolvidos.” Só não chorei porque me ri.
PS – Por causa da crise da dívida pública, cujos juros não param de subir, e tudo por culpa de José Sócrates, aqui deixo aos estimados leitores mais uma receita para quatro pessoas, de preferência socialistas, para verem como elas doem na oposição: “Tagine de peixe à marroquina”.
Ingredintes: azeite, cebola, açafrão, canela em pó, coentros e cominhos moídos, açafrão-da-índia, tomate em pedaços, caldo de peixe, quatro lucianos-do-golfo (por sugestão do governo PSD) pequenos, limpos, sem espinhas (essas deixam-se para José Sócrates e seus apaniguados), sem cabeça e sem rabo (por sugestão dos ministros do CDS); azeitonas verdes descaroçadas (por sugestão do PCP), sumo de limão (em homenagem ao resultado do BE), coentros frescos picados e cuscuz (por inspiração da deputada do PSD por Vila Real, Manuela Tender) preparados de fresco para servir.
Confecção: Aqueça o azeite numa cataplana, em lume brando, junte a cebola e deixe cozer (entretanto vá lendo as promessas do PSD e do CDS para não as esquecer), mexa de vez em quando, durante dez minutos até a cebola ficar tenra (e terna como Pedro Passos Coelho, vulgo PPC, em campanha eleitoral), mas sem alourar, como o Paulo Portas. Junte o açafrão, a canela, os coentros moídos, os cominhos e o açafrão-da-índia e deixe cozer, mexendo sempre, durante mais trinta segundos. De seguida prepare os tomates (com cuidado, em homenagem ao meu amigo L.) e o caldo. Logo após mexa vigorosamente. Espere que levante fervura. Baixe o lume, tape e deixe cozer durante quinze minutos. Destape e deixe apurar mais vinte a trinta minutos. Corte cada Luciano-do-golfo (com a mesma precisão com que PPC se prepara para cortar na saúde, na educação e na segurança social), introduza-os na caçarola, envolvendo-os no molho. Deixe cozer, em lume brando, durante cinco a seis minutos. Adicione cuidadosamente (como é timbre do nosso Presidente da República) as azeitonas e o limão de conserva e os coentros frescos picados. Tempere com sal e pimenta e sirva acompanhado por cuscuz.