O Poema Infinito (54): a perfeita noção de insatisfação
E por vezes sobe-nos um silêncio por dentro que nos aflige de morte. Esse é o nome da solidão por onde a raiz da nossa origem emerge para próximo do abrandamento da dor. As estrelas transformam-se em rituais de gelo. Vem de longe a voz que nos faz esquecer o próprio nome. Perdemos o mundo tentando alimentar-nos da feroz beleza do amor, do fogo cruel do desejo. O sonho simula a violência. Levitamos diluindo-nos no escuro. O tempo fixa o horizonte da obsessão. Quero ignorar a sedução que me incendiou o dia. Todos os caminhos da luz conhecem a fonte do desejo. Por isso tento segurar mais um pouco a divindade desequilibrada que se viu traída pelo fogo do silêncio. Outra é a dor das tuas mãos atravessando o caminho do meu corpo já exausto. Novas estrelas determinam o caminho até ao rio onde se afogam os anjos virgens da verdade. Aí começa a perseguição infinita. A nova fé no nada varre o esplendor do elixir da eterna juventude. Um homem baptiza Deus nas lágrimas dos mártires. Fios de luz divina desenham na pele dos humanos vários trilhos da morte. Vamos ter de começar de novo. Vamos ter de suspender o rosto indelével da felicidade dos traidores. Vamos ter de remendar o mal das aberrações divinas. Vamos ter de entoar cânticos negros enquanto exaltamos a fragilidade da vida. Chovem-nos gotas de sal nos olhos cansados. As nossas cinzas paralisam-nos o futuro. Os sonhos transformam-se em poeira. Também eu feneço na cruz diária da dissimulação. Deus despedaça a golpes de machado a árvore da vida. Esse é mais um tesouro arrasado pela ilusão da palavra divina. Sobeja de mim a perfeita noção de insatisfação. Só assim consigo pensar na origem do bem. Na sua violência, na sua ordem, na sua intrínseca superioridade moral. Na sua paz guerreira. Bebo na fonte da verdade a ilusão da mentira. Embriago-me até ficar lúcido.