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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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01
Jul11

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

70 – Emboscada ao capitão escoteiro mirim do monóculo de plástico. Cena 1(take 3). O capitão escoteiro de chapéu colonial e monóculo, batendo ritmadamente o pinguelim de varinha de salgueiro, segue ao lado do seu batalhão que se desloca em fila indiana. Um, dois, três… um, dois, três… Todos suam, especialmente o capitão escoteiro de chapéu colonial, monóculo e pinguelim de varinha de salgueiro. A linha de pequenos soldados serpenteia pelo meio do matagal. Alguns queixam-se por causa das espetadelas nos tojos. Outros gemem devido às urtigas e à picadela das moscas, que são bravas. O capitão escoteiro de chapéu colonial, monóculo e pinguelim de varinha de salgueiro, ordena que se faça silêncio. Estão a entrar em território inimigo e todo o silêncio é pouco. E adverte: “Quem se queixar por causa de merdices é expulso do pelotão.” Todos se calam, menos o burro mirim que, ordenado a pôr-se de cócoras para ser montado pelo seu chefe, esclarece que está farto de ser o burro do capitão escoteiro de chapéu colonial, monóculo e pinguelim de varinha de salgueiro. E sugere que se proceda como nos jogos de futebol relativamente ao guarda-redes: “Está na hora de outro tomar o meu lugar. Estou farto de ser burro.” O chefe, vendo que começa a ser perigosamente contestado nas suas ordens, ordena que se pare para descansar e convoca uma assembleia.

Cena 2 (take 1). Empoleirados em duas árvores, o Graça e o José observam o avanço das tropas inimigas.

Cena 3 (take 2). Sentados à chinês, os mirins conferenciam, debaixo do olhar atento do capitão escoteiro de chapéu colonial, monóculo e pinguelim de varinha de salgueiro. O putativo burro, os putativos cães pisteiros e o restante pessoal começam todos a falar ao mesmo tempo. O chefe ordena que se calem. O putativo burro diz: “Estou farto de ser o burro do pelotão. Outro que tome o meu lugar.” Em troca houve um elogio unânime: “Mas tu és o melhor burro que temos. É muito difícil substituir-te.” O putativo burro, olhando na direcção do chefe, inquire: “Tu disseste que, depois de um bom desempenho, haveria lugar a promoções. Como sei que cumpri bem o meu dever, considero que devo ser promovido.” O chefe: “Burro como tu não há nenhum no pelotão. Mesmo no bairro inteiro é difícil encontrar outro que se te compare. Por isso te escolhi propositadamente para seres a garbosa cavalgadura do capitão. Tenho por ti um carinho especial. Mas, em verdade te digo, um burro não pode ser promovido. É burro e pronto. Podemos é arranjar uma solução em que tenhas direito a mais descanso e a ração melhorada. Mas de burro não podes passar, senão ninguém se entende. No exército todos são igualmente importantes. Somos todos companheiros. Somos todos irmãos…” “Se somos todos irmãos, somos todos burros”, disse o putativo burro mirim, originando grande algazarra no pelotão. “Não interpretes mal as minhas palavras”, avisou o chefe mirim. “Disse que éramos todos irmãos… na solidariedade. O burro que transporta o chefe é tão importante como os cães pisteiros, ou os soldados. Mas uma vez burro, burro para sempre. Todos temos uma tarefa a cumprir.” “Ao menos troca um dos cães pelo meu lugar de burro”, disse o burro. Então o capitão escoteiro de chapéu colonial, monóculo e pinguelim de varinha de salgueiro, levantou-se e, ajustando o monóculo, proferiu: “Achas que devo colocar no teu lugar o Carlos ou o Diogo, que não podem com um gato pelo rabo? Nem os dois juntos possuem a tua força. Este nosso vigor em combater está estruturado de forma científica. Cada um ocupa o lugar que ocupa por direito próprio.” O putativo burro, lamentando-se: “Queres dizer que eu vou ser sempre o burro do pelotão?” “Sim, é isso. Basicamente é isso.” “Então vou-me embora.” “Mas um soldado não pode desertar no momento em que se acerca a batalha.” “Mas eu sou o burro do capitão e não um soldado. Além disso estamos a brincar. Se não me promoves, pelo menos a cão, vou-me embora.” O capitão escoteiro de chapéu colonial, monóculo e pinguelim de varinha de salgueiro, pôs-se a andar de um lado para o outro. Algum tempo passou e a expectativa cresceu. Por fim, disse o chefe: “Promovo-te…” E o putativo burro, interrompendo-o: “Assim está bem….” O chefe, chateado, por causa da interrupção: “… a cavalo.” O putativo burro: “Isso não é promoção nenhuma.” “Ai é, é. Um cavalo é muito superior a um burro, mesmo no exército”, esclareceu o chefe mirim. O putativo burro: “Tenho de alombar à mesma contigo. Isso não é nenhuma promoção.” E o chefe, magnânime, pois sabia que perder um excelente burro é uma complicação, mas perder a autoridade perante os seus homens é o caminho para a derrota da cadeia de comando, que conduz, inevitavelmente, ao desastre e ao caos, pensou, e bem, que a verdadeira autoridade não se proclama exerce-se. Por isso afirmou categórico: “Ou aceitas a promoção a cavalo, ou nada mais posso fazer por ti.” O putativo burro: “Então vou-me embora.” O chefe, autoritário: “Vai e não voltes. A partir deste momento passas a ser considerado um inimigo dos escoteiros mirins do Bairro. Passarás a ser um proscrito. Um burro sem préstimo, bom para os trabalhos do campo.” “Burro és tu”, disse em tom de desafio o ex-burro mirim. “Olha como falas para um teu superior”, advertiu o capitão escoteiro de chapéu colonial, monóculo e pinguelim de varinha de salgueiro. “Tu para mim não passas de um merdas. Razão têm o José e o Graça, és um presumido que não pode com duas bofetadas na cara. Só gostas de te armar. És um cobarde. Desafio-te para uma luta aqui mesmo. Mostra que és homem.” E foi-se caras a ele. Todo o pelotão se meteu a meio. Vendo que não podia com todos ao mesmo tempo, o ex-burro mirim deu meia volta e tomou o caminho de casa. E avisou: “Lá chegará a vez, do burro te foder as trombas, meu ventas de larego.” 

Cena 4 (take 1). Empoleirados, cada um em sua árvore, o Graça e o José continuam a observar o avanço das tropas inimigas. Diz o Graça intrigado: “Olha, o António vai-se embora!” Ao que o José responde: “Isso é muito bom, pois sem o calmeirão a vitória é quase certa.”

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