O Homem Sem Memória
73 – O José continua vigilante. De cima do terraço observa as suas tropas que, também elas, mesmo não parecendo, continuam despertas. Nas terras em volta amadurecem os frutos, as ervas secam e os pássaros cantam alegres. Este continua ser o Verão do seu contentamento.
Sentado numa cadeira reza baixinho uma oração por si inventada onde exalta o Sol, a Terra, a Água e o Ar. O chapéu à Daniel Boone permanece bem erecto na sua cabeça. Enquanto observa o nascer do dia tem uma erecção e começa o chorar baixinho de verdadeiro júbilo. De seguida entoa, com a boca transformada em cornetim, o hino do amanhecer, para deleite das suas imaginárias tropas, dos galos dos vizinhos e dos cães das redondezas.
A sua mãe, também ela já desperta e a rezar as suas orações, emociona-se com a pequena loucura do filho mais velho. O seminário tem desenvolvido nele uma estranha, mas tocante, loucura fantasiosa. Os irmãos adoram-no.
O José tem feito deles, pequenos conselheiros, confidentes ou filhos adoptivos. Conta-lhes histórias, confidencia-lhes pequenos segredos, enche-os de mimos. Continua a ler imenso. Os livros são o seu verdadeiro mundo. São o território que administra com sabedoria, lealdade, verdade e justiça.
Hoje o cornetim toca também para lembrar à família que está na hora de acordar e preparar toda a logística necessária que permita passar um dia à beira rio.
O dia tem tudo para dar certo: amanheceu lindo de morrer, não há vento e está calor. Além disso, o guarda Ferreira está a gozar alguns dias de licença. Por insistência da dona Rosa, uns dias fuma menos… mas bebe mais. Noutros dias bebe menos… mas fuma mais. O guarda Ferreira continua, para nosso gáudio, o homem equilibrado que sempre foi e continuará ser, se Deus quiser.
Mal acordou fumou um cigarro, mas não bebeu nada. Tratou da sua higiene pessoal, foi buscar os garrafões do vinho tinto e arrumou-os junto à porta. Depois comeu um pedaço de pão com nozes e figos e bebeu um calicezinho de aguardente. Mas não fumou nenhum cigarro. Continua fiel à sua promessa de equilíbrio. De seguida ajudou a acomodar a comida feita de véspera nos cabazes e a dobrar os liteiros e os cobertores. Enquanto a dona Rosa vestiu e calçou os filhos, o guarda Ferreira e o José transportaram e acomodaram toda a tralha na carroça do vizinho Carriço.
Saíram de casa às sete, chegaram, por volta das oito, à margem direita do Tâmega e às nove sentaram-se a comer o pequeno-almoço. Durante o caminho o guarda Ferreira não fumou um único cigarro. Ainda fez uma ou duas tentativas para puxar o maço do bolso da camisa, mas o olhar certeiro da dona Rosa foi suficientemente persuasivo para o inibir da atitude. Pelo caminho juntaram-se a muitas outras famílias que seguiam na mesma direcção e com o mesmo propósito.
Mal dispuseram as mantas no chão, algumas crianças voltaram a adormecer. O José pediu autorização à mãe para as acordar. Ela disse-lhe que o melhor era deixá-las dormir até acordarem. Nessa altura terão fome e será mais fácil alimentá-las. A mãe sorriu para o José e o José sorriu para a mãe. É bem possível que já se queiram mais um pouco. Viver à distância torna-nos mais tolerantes, atenua-nos os defeitos, aumenta-nos as virtudes.
O mata-bicho soube-lhes pela vida. O bacalhau frito e o presunto, juntos com o pão centeio, combinaram bem com a fome e esta também combinou muito bem com a bola de carne, os rissóis, a linguiça e o salpicão. Depois o vinho caiu regaladamente em cima da comida e a comida agradeceu. O guarda Ferreira, em coerência com o equilíbrio prometido, e devido a não ter fumado um único cigarro – se descontarmos um fumaçado a medo quando foi mijar atrás de um casebre e ainda outro durante a penosa montagem do acampamento –, bebeu um litro de tinto bem medido. Seguidamente foi pendurar os garrafões a refrescar na água do rio.
As crianças, por fim, acordaram e puseram-se também elas a comer. As mães começaram a falar-lhes, a dar-lhes mimo e a sorrir, o que combinou muito bem com a boa disposição dos cavalheiros que começaram a falar de futebol e a organizar-se em pequenos grupos. Porque os garrafões de vinho estavam afogados em água corrente, o guarda Ferreira, mais uma vez fiel à sua promessa de equilíbrio, fumou vários cigarros com o ligeiro intervalo de tempo que levava a acendê-los uns nos outros.
Os homens, esses sortudos, como não discutiam política, por não saberem o que isso era, e porque eram todos, ou quase todos, do Benfica, o que não possibilitava o contraditório necessário à manutenção de uma discussão acesa sobre o desporto rei, puseram-se a jogar à sueca. E assim se mantiveram até à hora do almoço.
Na banca onde o guarda Ferreira se alapou para batê-las, ao contrário das outras mesas de sueca, o vinho não entrou. A Dona Rosa tinha dado ordens expressas: “Aqui só joga quem não beber.” Ao que alguém mais bem disposto do que a anfitriã perguntou: “Nem um copinho de água?” Ao que ela respondeu: “Vai à merda Manuel.” Para logo de seguida se ouvir a voz serena do José: “Por favor, mãe, não sejas tão escatológica.” Ao que a família Ferreira em uníssono respondeu, incluído o guarda Ferreira, imitando a voz estridente da dona Rosa: “O que eu sou é escanifobética. Ah, ah, ah!” Ao que o senhor Manuel ripostou atrapalhado: “Não percebo nada do que estais para aí a dizer.” Então a dona Rosa repetiu: “O que eu sou é escanifobética”. Foi a vez do João se começar a rir e dar um peido sonoro como sempre acontecia quando gargalhava com vontade. O que foi aproveitado pelos outros irmãos para se rirem também o que provocou novo peido do João e mais riso nos irmãos e na dona Rosa, a que só não se lhes juntou o Leão, porque já tinha morrido, e o Virtudes porque tinha ficado em Montalegre, sempre num crescendo de hilaridade que nos abstemos de dar conta mais pormenorizada porque, afinal, já foi descrita em dois momentos anteriores.
O guarda Ferreira, como não bebeu… fumou. E bem, só não chupou os dedos porque necessitou deles para pegar e largar as cartas.
O almoço foi bom. Comeram bolos de bacalhau, azeitonas, presunto, arroz de ervilhas, frango assado e bifes e chicharro de cebolada. Como sobremesa filaram-se no melão. As crianças beberam Sumol, as mulheres mais envergonhadas água e as mais destemidas vinho branco. Os homens enfrascaram-se com tinto. No fim do almoço o guarda Ferreira ainda esboçou o gesto de puxar de um cigarro. Mas como antes olhou instintivamente na direcção da dona Rosa, meteu de imediato o cigarro no maço e serviu-se de mais dois copos de tinto de Arcossó.
Depois do repasto, enquanto o sol apertava, todas aquelas singelas criaturas de Deus, saciadas de comida e de paz, se puseram a dormir a sesta. Ressonaram como cavalos bêbados.
Lá mais para a tarde, sob o olhar vigilante das mães e dos irmãos mais velhos, as crianças atreveram-se a ir dar banho nas águas mansas do rio. Com a algazarra das crianças, os homens despertaram dos seus sonos embriagados e começaram a sorrir e a peidar-se com muita singeleza de espírito.
Esta ocasião hilariante permitiu que o guarda Ferreira fumasse mais um apetecido cigarro. Depois foi jogar as cartas e continuou a fumar ao mesmo ritmo com que perdia partida atrás de partida. A sorte do jogo não queria nada com ele. “Azar ao jogo, sorte no amor”, disse galhofando o par de adversários de mesa da sueca. Mas não levaram o riso até ao fim. Falar de amor na relação entre o guarda Ferreira e a dona Rosa é coisa que nem os pobres de espírito conseguem dizer sem sentirem remorsos. Com coisas sérias não se brinca.
No meio da erva seca os rapazes mais velhos jogaram futebol por entre gargalhadas e pó. Apenas o José se absteve devido a não ser capaz de andar descalço. Ainda propôs que lhe autorizassem a jogar com os sapatos que eram mimosinhos. Mas eles disseram que não, a jogar que o fizesse de meias. Ele assim procedeu, mas o raio das peúgas romperam-se logo de seguida.
Depois de mais uma maratona de cartas e de cigarros, o guarda Ferreira voltou a ser convidado para a merenda. Comeram-se os restos, que, mais do que restos, eram nova e suculenta refeição. Escorropicharam-se os garrafões de vinho e alguns homens mais bebidos, começaram cantar o fado. Por não haver mais vinho, o guarda Ferreira pode terminar o dia fumando os cigarros que lhes restavam olhando serena e calmamente para os filhos e para o pôr-do-sol. Quando a dona Rosa apareceu na sua frente, em contra luz, a lembrar-lhe que estava na hora de regressar a casa, o guarda Ferreira teve uma epifania: viu a sua mulher a morrer afogada no rio. Depois olhou para o filho e arrepiou-se. O José continuava a adivinhar o pensamento dos outros.