O Poema Infinito (62): fogos súbitos e livros sinfónicos
Iluminam-se mil olhos nos teus olhos e mil bocas saboreiam o ar doce da noite. Uma canção antiga soa dentro de uma casa com janelas abertas. As palavras pensadas desenham ciclos de memória. Um corpo absorto pelo cio adormece bocejando ternura e desencanto. Lembro-me de barcos e de tormentas e dos calendários brumosos da navegação. A solidão transforma-se numa palavra emigrante. Noutras ocasiões desenhei camponeses risonhos como searas acariciando animais e plantas. Neles encontrava sempre a terra que me há-de consumir. Terra e mar, um destino de paciência e euforia. Tu és a minha guerra e a minha paz. Ainda. E isso faz crescer água nos meus olhos que creio inocentes. A noite limpou o dia de movimentos caóticos. Agarrado à tua cintura sorrio e peço-te para irmos para a cama. Digo-te ao ouvido um doce lugar-comum: a noite fez-se para o amor. Outro: terna é a noite. Adormecemos quando o rocio começa a pousar límpido sobre a banal cor das flores do jardim. A felicidade é isso. Sonho com fogos súbitos, com livros sinfónicos, com éguas preenchidas de curvas elásticas, com antigos cavaleiros andantes sentados em selins de cabedal adejando o cabelo ao vento, com catedrais voadoras, com deuses loucos de amor humano. Sonho que sou um cavaleiro da távola redonda em busca do cálice do sexo. Uma linguagem diminuta toma conta da manhã. Pessoas matinalmente certas povoam de novo a cidade e abrem o seu corpo à tristeza do dia-a-dia. Alguém prega o seu olhar numa ambulância madrugadora. A vida começa a flutuar nas ruas. Homens industriosos passam rente à boca fechada dos livros e perfuram o seu silêncio subversivo. Cada vez mais iniciam o seu dia fatigados pela desilusão. Tento descer devagar da minha alucinação. O tempo encaixa na sua lógica neutra. É essa a sua insistência científica. Insisto em exercitar a boca com a palavra esperança, mas as pessoas teimam em evaporar-se. Começa a chover sobre o quintal da casa. O céu fica metafísico. As mãos começam a iluminar-se de novo quando toco nos teus olhos.