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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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26
Ago11

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

78 – Naquela época, as verbenas do Jardim Público em Névoa eram célebres e, talvez por isso mesmo, muito concorridas. Naquele tempo também o dinheiro escasseava no bolso de quase todos os portugueses, especialmente no dos jovens. Mas a escassez aguça o engenho.

Era frequente ver grupos de adolescentes organizarem-se por vizinhança ou outras afinidades electivas. Contavam os escudos, dividiam tarefas e actuavam segundo um plano previamente delineado. Parte deles adquiria os bilhetes no guichet junto à entrada do recinto, enquanto a outra parte se dirigia a um caminho estreito entre a margem do Tâmega e o muro de pedra que sustentava o gradeamento de ferro ao fundo do jardim. Esse era o lado mais vigiado, pois era por ali que os penetras sem bilhete tentavam a sua sorte. Uma das tácticas utilizadas pelos rapazes que tinham entrado pelo portão principal consistia em juntar-se no fundo do recinto e simular uma luta corpo a corpo pretextando desavença grave. Enquanto a luta se ia desenvolvendo com a lentidão necessária, e os polícias tentavam acalmar os ânimos entre os contendores, parte do grupo dirigia-se ao muro e içava os colegas que aí estavam à espera.

Depois de os rapazes serem içados e o sinal combinado ser dado, a rixa acabava e o grupo lá ia à sua vida, bem assim como a patrulha da polícia. Tudo estava bem porque acabava em bem. Tudo era como soía.

O dinheiro poupado nos bilhetes estava destinado a, lá mais para a noitinha, servir para adquirir sardinhas assadas, pão, caldo verde e vinho tinto.

Dentro do recinto, a rotina era a usual: uns dançavam, outros viam e os restantes passeavam para cima e para baixo aproveitando o fresco da noite.

O José, como todos sabemos, era da facção mais dada ao baile. Apreciava uma boa dança, gingava à maneira e aproveitava-se, quanto baste, das possibilidades eróticas, ou outras, do seu par. Masturbações no Jardim Público eram proibidas, por falta de espaço.

Nestas ocasiões, o José costumava emparelhar com o Pereira, um rapaz alto e magro como um lareiro. Também ele gostava de se enroscar nas raparigas com uma certa persistência e denodo. Algumas davam-lhe tampa logo após a primeira dança, mas outras continuavam a bailar ao seu ritmo, quase sem mexer os pés. O Pereira, para a dança, era um pé de chumbo, mas tinha conseguido transformar essa fraqueza na força do seu dançar. Era a prova provada de que se pode metamorfosear um defeito numa virtude. Por vezes desperdiçava o par porque se recusava a dançar ao som da música da banda filarmónica. Para ele só a música moderna é que contava. Já o José era pau para toda a colher.

Naquela ocasião, por circunstâncias várias, o José resolveu, antes de começar a sua noite dançante, passear um pouco na companhia do Andorinha, um seu colega assaz curioso. Vinha às verbenas mas nunca dançava. Passeava com quem o quisesse ouvir e, quando a fome apertava, ia comer com o grupo o que o grupo previamente decidia.

Nessa noite o Andorinha começou a falar de um livro que o tinha marcado profundamente. Já ia na segunda leitura e afirmava que, de tão interessante, era obra para ser lida mais algumas vezes sem enjoar. O José perguntou-lhe qual era o livro, mas o Andorinha só prestava atenção ao seu pensamento. E continuou a falar do livro durante a noite toda. Do quanto o tinha marcado o personagem principal, rapaz muito religioso, que perdeu subitamente a fé porque encomendou a cura do seu pé boto a Deus e Ele nada fez, deixando-o manco e ateu.

O Andorinha era um rapaz predestinado, um génio de província, que arranjava tudo o que era eléctrico utilizando a sua intuição e um ferro de soldar. Adorava, especialmente, consertar rádios. E fazia-o de graça. Era rapaz para se enfiar em casa semanas seguidas, movendo-se da cama para o sofá e do sofá para a cama, lendo “A Servidão Humana”, vendo televisão, ouvindo rádio, consertando os aparelhos que lhe levavam a casa, comendo, bebendo e fumando muito. Era um fã dos Beatles e dos programas televisivos de António Vitorino de Almeida. Do músico português apreciava a verve fácil e corrosiva anti-regime, e escangalhava-se a rir quando recontava os discursos do mestre enquanto abraçava ao colo um chimpanzé que, dizia ele, e com alguma razão, convenhamos, por muito que nos custe, que era muito mais inteligente do que a maioria dos portugueses, incluídos os governantes.

Gostava ainda o Andorinha de, nas noites mais frias e nevoentas, dar várias voltas às pontes, num trajecto de dezenas de quilómetros, pelo simples prazer de conversar e de falar do pé boto do seu herói ateu. Outras vezes relatava histórias hilariantes de homens da aldeia onde nasceu. Contava repetidamente a de um indivíduo que, de todas as vezes que ia defecar ao monte, pois não possuía casa de banho, encontrava invariavelmente um lobo que mais não fazia do que ficar quieto enquanto o homem, de cabelos em pé, fazia o que tinha a fazer. Contava também, com a cara mais séria do mundo, a triste história de um primo seu que tinha a cara torta de tantas bofetadas levar do seu defunto pai, que lhas dava todas as noites e sem prévio aviso.

O maior amigo do Andorinha era um gato que o arrebunhava todos os dias com todo o carinho do mundo. Ele, em troca, lançava-o da varanda lá de casa para a rua com o firme intuito de observar como invariavelmente o bichano caía sempre com as quatro patas servindo de amortecedores.

Essa noite de verbena foi a primeira soirée de uma proveitosa amizade, pois só ela é capaz de pôr um viciado na dança a escutar um companheiro durante quatro horas seguidas com muito prazer e subido interesse. 

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