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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

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23
Set11

O Homem Sem Memória

João Madureira

 

81 – Mas havia algo que teimava em perturbar grande parte do êxito artístico do António. Trajar de fato, camisa à francesa e, ao mesmo tempo, pedalar uma bicicleta, para o que tinha de amarrar a bainha das calças com uma mola de pendurar a roupa. Era uma situação vexante. Podia sonhar em ir a calcantes para o emprego, como o faziam os pequeno-burgueses que habitavam no centro da cidade. Mas ele, qual trabalhador suburbano, tinha de palmilhar os quilómetros da praxe para ir de sua casa ao trabalho, regressar para o almoço, ir de novo para o trabalho e regressar ao fim do dia a casa para comer a ceia, acomodar os canários e ensaiar o repertório. 

Os ensaios fazia-os sempre em frente ao espelho do guarda-fatos do quarto tendo por plateia os irmãos que se enchiam de rir e bater palmas. Quando ainda estava um pouco inseguro do seu desempenho numa nova canção, aí enxotava a garotada para fora da sala de ensaios e trabalhava com afinco as suas performances românticas tendo por base as fotografias das capas dos discos, fotografias recortadas de jornais e revistas ou das actuações dos verdadeiros artistas em programas de variedades televisivas.

Tentou ainda acrescentar ao seu repertório a “Canção do Rouxinol” e “Campanera”, de Joselito, mas desistiu porque não conseguia, por mais que tentasse, imitar os requebros e os vibratos do Pequeño Ruiseñor (em português, o Pequeno Rouxinol). Era pura e simplesmente incapaz de emitir os sons agudos prolongados, que eram o principal trunfo de Joselito.

Durante muitas das suas actuações, quer para grandes plateias, quer para plateias mais discretas, quando lhe pediam que cantasse canções do Joselito, ele, entre o embaraço e a cordialidade, desculpava-se com o tipo de voz do ruiseñor (rouxinol em português) espanhol, que, na sua perspectiva, era a de uma criança, e ele, o António, de criança, já não tinha nada. Ou quase nada, se lhe tirarmos o sonho, a inocência e o deslumbramento.

O público comum, na sua frontalidade, franqueza e entusiasmo, retorquia-lhe que ele era quase tão pequeno como o Joselito, ou o Joselito era quase tão alto como ele, que era a mesma forma de dizer que ambos e dois, como muito bem diz o povo no seu linguajar patusco, eram minorcas. Mas, apesar da provocação, que todos entendemos genuína e sincera, e por isso fruto da ingenuidade e do gosto popular, o António espargia-os com música à capela, como sói dizer-se hoje em dia. Então debitava as modinhas de Roberto Carlos, Nelson Ned, Teixeirinha, Los Diablos, Gianni Morandi, e dos Antónios: Calvário, Mafra, Matos e Mourão, que punham aos pulos o coração dos mais jovens, arrepiavam a pele e punham os pêlos em pé aos amantes, partiam o coração aos casais mais maduros e faziam chorar baba e ranho aos velhotes. Com um misto de carinho e provocação, muitos dos seus amigos, sabendo-lhe do dói, perguntavam-lhe: “E o rouxinol? Queremos o rouxinol. Rouxinol, rouxinol, rouxinol.” Ao que ele respondia com muita habilidade e sapiência: “O rouxinol ficou em casa na gaiola. Para todos vós, aqui vai, com muito carinho e afecto, especialmente dedicado às raparigas namoradeiras, e aos rapazes mais atrevidos e marotos, a “Namoradinha de um amigo meu”, de Roberto Carlos.”

Era frequente ouvir-se na plateia: “O rapaz pode não poder com o «Rouxinol» do Joselito, mas dá-lhe forte com as canções do Roberto. E assim, mesmo sem instrumentos nem microfones, apenas com a boca, é um regalo ouvi-lo cantar. A voz é um instrumento poderoso.”

Todos lá no bairro concordavam com o teor deste comentário. O senhor Manuel, o seu autor confesso, que possuía uma taberna, um mix, como sói dizer-se contemporaneamente, de loja comercial e casa de pasto, era um dos seus mais indefectíveis fãs. Noite em que o António actuasse no Bairro, era certo e sabido que o vinho, os petiscos, os rebuçados de tostão e os espanhóis, os sorvetes de groselha, as embalagens de bolacha Maria e a laranjada Flávia, se esgotavam, ainda antes de a noite terminar.

É provável que estejamos a exagerar um pouco, pois o vinho era muito difícil de se esgotar numa taberna de bairro no início dos anos setenta. O vinho – desde que o mundo é mundo, ou desde que Cristo ensinou o seu povo a baptizá-lo e a multiplicá-lo, técnica que também aplicou ao pão e ao peixe, mas sem tanto êxito –, além de existir como reserva estratégica numa taberna, tal e qual o ouro no Banco de Portugal, sem grandes técnicas pode ser acrescentado. Claro que perde algumas das suas qualidades organolépticas intrínsecas, como o sabor, o odor, a cor e o corpo, mas ganha outras, como por exemplo a de não emborrachar tanto.

O António, já um verdadeiro manipulador de plateias, misturava sabiamente as canções, sobretudo as brejeiras com as mais sentimentais, perseguindo claramente a intenção de produzir um efeito catártico, o que lhe conferia um estatuto de estrela de bairro, que não sendo uma forma de ganhar a vida era, nitidamente, uma forma de adquirir estatuto e criar amizades electivas e licenciosas. Pois essas coisas não são apenas apanágio dos ricos, famosos e notáveis. É que os pobres também têm sentimentos, sexo e cérebro. Além de verem, sentirem, emocionarem-se com o sol, o vento e um céu azul ou vermelho ou laranja, gostam de beijar, acariciar, oferecer flores, ouvir palavras doces, fazer carinhos, e até trajar com luxo e ouvir contar uma boa história, ou ver um lindo quadro, ou, até, fazer amor, mesmo que lhe chame outro nome. O povo pode, muitas das vezes, não acertar nas palavras, mas bate quase sempre certo nos sentimentos.

Mesmo sem dar nas vistas, o António, a par do êxito, começou a ganhar algum dinheiro extra. E, farto de pedalar com molas a prender as calças, como um vulgar trolha suburbano, imaginou comprar um carro. Por isso, um dia, ao chegar do trabalho, virou-se para o pai e anunciou: “Vou tirar a carta.” E o pai: “E para que queres tu gastar dinheiro a tirar a carta de condução? Pesa-te o dinheiro no bolso? Pensa mas é em comprar uma mota como a minha. Eu, iludido como tu, tirei a carta de condução. E para quê, se continuo a andar só de mota? Um carro não é luxo para pobres. Desengana-te meu filho. Uma mota é que é. Vais e vens do trabalho rapidinho e sem te cansares.” Ao que o António respondeu: “Posso ir e vir mais rápido de mota, mas de Inverno quem é que aguenta o frio e a chuva? Eu vou tirar a carta de condução.” E foi para o quarto ensaiar “ O Calhambeque” do Roberto C.: "Essa é umas das muitas histórias / Que acontecem comigo / Primeiro foi Suzy / Quando eu tinha lambreta / Depois comprei um carro… / Quero buzinar o Calhambeque / Bi Bidhu! Bidhubidhu Bidubi!...

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