O golfe, a feira medieval e a agenda cultural
R. virou-se de repente para mim e disse: “Um estudo recente feito por especialistas revelou que a cultura do golfe tem um efeito extraordinário na consolidação e desenvolvimento da democracia, do mercado livre e no incentivo para uma sociedade mais aberta. Os países, com uma cultura do golfe raramente entram em guerra e, quando o fazem, nunca lutam entre si. Já os países onde essa cultura não está implementada possuem um perfil marcadamente mais belicoso.”
“É um facto”, concordou o F. com uma pontinha de sarcasmo.
“Faz todo o sentido”, continuou o R., “pois o golfe é o desporto da burguesia por excelência. E o que pretende a burguesia? Paz, claro está. E também pretende ordem e segurança. E deseja, ainda, uma estrutura social que seja propícia ao negócio, para que possa fazer aquilo que sabe fazer melhor, ganhar muito dinheiro. É esse o efeito civilizador da classe média, e, sem ela, a democracia morre na praia.”
“O problema é que no nosso país ela está a desaparecer”, lembrou o M. “E quando a classe média não consegue jogar golfe aproxima-se a bancarrota…”, “Ou uma revolução”, augurou o L.
Eu tentei por uma pouco de água na fervura: “Como muito bem diz Anatole Kaletsky, no seu livro Capitalismo 4.0, o mundo é demasiado complexo e imprevisível para que qualquer mecanismo de tomada de decisões seja consistentemente correcto, quer se baseie em incentivos económicos, quer se baseie em incentivos políticos. A experimentação e o pragmatismo têm, portanto, de se tornar palavra de ordem…”
“Tu lês muito”, atirou-me à cara o R. “És um poço de sabedoria.”
Ao que eu retruquei: “Leio muitos livros, mas não os suficientes para me considerar um intelectual. Nunca o fui e nunca o serei. Posso afirmar que nem golfe sei jogar. E isso, como muito bem quis dizer o R., é um entrave à democracia e ao desenvolvimento social. Na verdade, nunca me especializei em coisa nenhuma, nem em mulheres, nem em vinhos, nem em futebol, nem em cinema, nem em política. Considerei que era muito classe média-média, pois gosto de estar no silêncio do meu escritório, na modorrice do meu quarto silencioso e no conforto da minha sala a ver televisão em alta definição. Pensava que dessa forma contribuía para o aprofundamento da democracia, para a consolidação do mercado, para o estímulo de uma sociedade mais livre e aberta. Para a paz. Mas, sei-o agora, como não sou capaz de acertar com um taco numa bola pequena e enfiá-la num buraco exíguo, estou a contribuir para a bancarrota, ou para o eclodir de uma guerra, ou duma revolução.
“Todas as guerras deviam ser à maneira antiga, decididas em duelos de espada, cada qual utilizando a sua inteligência, a sua força e a sua habilidade”, lembrou com um brilhozinho nos olhos o F.
O D., que esteve calado até esse momento, foi quase logo ao que lhe interessava. Primeiro demoliu o golfe, que, na sua opinião, é um jogo para meia dúzia de manientos. Ele, que se afirma um rural empedernido, diz que gosta da tradição. Mas a tradição já não é o que era. Mesmo assim lembrou-se de dar como exemplo de boas práticas a realização da Feira Medieval. Disse que sim senhor, que esteve bem. Que na Idade Média é que se vivia com todo o recato. Gente simples, que ia feirar com o que tinha, sem se preocupar com o futuro. “Nessa altura”, lembrou o D. “vivia-se o dia-a-dia com simplicidade e agrado. E assim é que devia ser. O progresso matou a tradição, assassinou o convívio, estraçalhou a honra, depenou o amor, aviltou a amizade e defenestrou as relações sociais.”
O F. lembrou-lhe que na Idade Média as pessoas morriam como coelhos, passavam fome de rato, matavam-se por dá cá aquela palha e trabalhavam como escravos. “Por isso te digo que esses arremedos de feiras medievais que por aí se realizam são sucedâneos dos filmes de aventuras e, por isso mesmo, puros exercícios de ficção para enganar papalvos e vender bugigangas. Além disso, o que tu viste em Chaves tem muito pouco de feira portuguesa, ou ocidental. O rigor histórico é ínfimo. A falcoaria era apanágio de ricos, os encantadores de serpentes eram islâmicos, como islâmicas eram as danças do ventre, os suk, os karavansai e as jaymas. Isto já para não falar nas lendas tuaregues e berberes, importadas, especialmente, do Magrebe.”
“A mim”, disse o L. com toda a ronha do mundo, “o que me fascinou foi o parque infantil medieval. Isso diz tudo acerca das patranhas que por aí se vão efectuando com o nome de Feiras Medievais.”
Eu tentei pôr um pouco de água na fervura: “Se calhar isso é o que menos interessa. De facto, o circo foi interessante. Aquilo é um espectáculo montado para atrair pessoas. Para as divertir. Para…”
Mas o F. adiantou-se: “Para enganar papalvos. Para ir fazendo campanha eleitoral mesmo com as eleições ainda longe. É por estas e por outras que o país está à beira da bancarrota. Gasta-se aquilo que não se tem com objectivos de propaganda. Desbarata-se dinheiro em inutilidades. E depois quem paga somos todos nós que não fomos tidos nem achados nas decisões. É o pão e o circo para entreter o povo. E tudo isto sucede enquanto o país não cria empregos para oferecer aos desempregados e aos jovens, enquanto se corta na saúde, na educação e na segurança social. Faz-me lembrar o Titanic, que enquanto a orquestra tocava o navio se afundava, inexoravelmente.”
Depois de o deixar desabafar, tornei a teimar: “O público até interagiu com os músicos e os actores. É festa, é festa…”
“A festa acontece sempre antes da tragédia…”, tornou a perseverar no seu pessimismo o F.
Mas eu tornei a teimar: “Venderam-se produtos da terra, roupa, petiscos…”
Mas o F. tornou a interromper: “Isso vende-se sempre. Seja Feira Medieval, Feira dos Stocks, Feira dos Chás, etc. Além disso, e para vergonha nossa, as alheiras e as linguiças vieram da Guarda.”
Mas eu tornei a teimar: “Reconheço que este pagode já o vi em muitos outros lugares. O espectáculo é montado por uma empresa especializada. No entanto, foi agradável de seguir. Os artesãos…”
“Artesãos? Os poucos artesãos que por lá vi eram todos de fora”, exagerou, como é seu costume, o F.
Com a toleima com que o F. argumentava, não deu para continuar a conversar sobre a feira. Ele, quando quer, é mesmo mau. Por isso, resolvi ir para casa ver o debate no parlamento. Lá também teimam muito uns com os outros, exaltam-se e berram, como se fossem todos surdos. Isto apesar de terem microfones com muito bom som. Manias. Mas consigo ouvi-los sem me chatear, pois não são meus amigos. Além disso, aquilo que eles dizem entra-me por um ouvido e sai-me logo pelo outro. Se um diz bem de uma coisa, de imediato outro vem explicar o contrário. Parecem garotos. Ninguém se leva muito a sério. É tudo retórica. Tudo encenação.
Já um pouco fora da Feira Medieval e do Parlamento, abri a agenda cultural para me inteirar, e para vos dar conta, do que de mais relevante se passou na cidade, isto na perspectiva dos senhores que a elaboram, identificados no documento como o putativo “Gabinete de Apoio Técnico à Eurocidade Chaves-Verin”, seja lá isso o que for.
Informo os estimados leitores que, desde logo, a apresentação me fascina. A sua dimensão em harmónio é um dos seus elementos mais sedutores, senão mesmo o primordial. E os seus títulos em escada são, também eles, um elemento gráfico muito atraente, além de prático, pois a busca é instantânea. A capa da edição de Setembro traz dois saxofones. E eu também gosto muito de saxofones. E o fundo é azul. E eu também gosto muito do azul. Bastava apenas isso para ter o meu apoio. Mas toda ela é sumarenta e repleta de surpresa, evidenciando, desde logo, o forte apoio às artes por parte da autarquia e a oferta cultural no nosso concelho, que é vigorosa, diversificada e de grande qualidade.
Senão vejamos: Com a identificação de “todo o mês”, temos três actividades de topo, pois são as iniciativas com mais destaque na agenda: o mundo dos livros, a hora do conto e o curso de teatro. No entanto, relativamente à primeira iniciativa ela não passa de uma proposta, que se pode realizar… ou não, dependendo de marcação prévia por parte de grupos organizados. E também não é durante todo o mês, como erroneamente se veicula, mas apenas às terças-feiras, ou seja apenas quatro dias em vinte e tal possíveis. A hora do conto sofre do mesmo problema, pois só se realiza às quintas-feiras. Relativamente ao curso de teatro, não são prestadas informações específicas, limitando-se a agenda a informar os interessados que estão abertas as inscrições.
Claro que nas páginas da agenda também existem algumas propostas de música e uma que outra exposição. Mas o prato forte da agenda cultural continua a ser as concorridíssimas palestras no SPA do Imperador, nada mais, nada menos, do que seis, um workshop e três caminhadas. A interessantíssima temática da podologia deu agora lugar à alimentação e outras temáticas convergentes. A primeira foi sobre o rastreio de nutrição, a segunda foi o primeiro remake da edição de Agosto (Osteoporose e os seus factores preventivos), a terceira evidenciou a menopausa e a alimentação, a quarta abordou os mitos da alimentação, a quinta foi outro remake da edição de Agosto (A alimentação dos nosso filhos e netos) e a sexta abordou a nutrição e as doenças cardiovasculares. O workshop (com a exigência de uma inscrição de sete euros) foi dedicado às ervas aromáticas e às especiarias. Mas as Termas de Chaves – SPA do Imperador, arranjou ainda forças, e capacidade logística, para organizar três caminhadas, com uma inscrição de cinco euros, mas com direito a assistir à actuação de um rancho folclórico.
Podemos dizer, sem nenhum exagero, que se não fossem a Biblioteca Municipal e as palestras do SPA do Imperador, a agenda corria o sério risco de ter edições com espaços em branco para as iniciativas de Chaves e todo o restante preenchido com a divulgação dos filmes clássicos que passam em Verin. Com este tipo de vida cultural no nosso concelho, estamos em crer que mudar é preciso. Para mais informações, esperem pela próxima semana. Até lá. E agora desculpem-me que vou ali vestir o fato de treino, calçar as sapatilhas ortopédicas, pegar no bordão e meter dez euros ao bolso, pois não posso perder a caminhada do SPA.