O Homem Sem Memória
82 – Num dia lindo de sol, António, o Roberto Carlos do Bairro Operário, principiou as suas aulas de condução na única escola que existia na cidade. E elas foram duras, pois os monitores e instrutores eram ríspidos, gozões e de palavra avinagrada.
O código, logo de início, teimou em entrar na cabeça do António aos repelões. Fez inúmeros testes continuamente a suar como se estivesse nas obras a acarretar massa. Aquelas perguntas, todas intensamente habilidosas e muito parecidas umas com as outras, deixavam-no confundido, indeciso e irritado. Quando as aulas de condução começaram, o António ficou mais aliviado. Mexer nos pedais, na manete das mudanças e do pisca, e virar o volante para a direita e para a esquerda estava dentro dos seus padrões de desempenho, já destrinçar palavras no meio de frases, todas elas semelhantes, para escolher a correcta, provocava-lhe tonturas.
Nesses dias perdia, literalmente, o pio. Não assobiava e, muito menos, cantava coisa que se ouvisse. Parecia um frade capucho com voto de silêncio. Mesmo as vendas, no estabelecimento comercial onde trabalhava, ressentiram-se do stress do António. O patrão avisou-o: “Vê lá se tiras a carta rapidamente ou desistes dela, senão vais para o olho da rua. O teu rendimento profissional tem decaído a olhos vistos. E isso sente-se na caixa ao fim do dia. Se não apuro nada, nada te posso pagar.”
E ele: “Sim, senhor Alberto. Eu vou-me aprumar. Na condução já me desenrasco, o código é que é uma chatice. Baralho-me deveras nas respostas, confundo alguns sinais e não destrinço lá muito bem o que pretendem que eu responda. E isso dá-me cabo dos nervos. Eu que até decoro todas as letras das canções, mesmo das mais difíceis, como é o caso de “O Calhambeque”, vejo-me e desejo-me para acertar uma resposta. Aquilo é meio por meio, acerto uma e erro outra logo de seguida. É um tormento. Olhe que ler é uma coisa, mas entender aquilo que se lê é outra bem distinta. Eu que o diga, que leio aquelas frases todas de enfiada, mas não entendo quase nada. Muita gente reprova no código porque não atina com o sentido das perguntas. Umas vezes pretendem uma resposta e noutras exigem outra diferente, sem que eu descortine o motivo da discrepância. A tarefa é de doidos. Mas vou perseverar naquilo até que me saia tudo direitinho. O senhor Alberto é testemunha de que não sou nada burro, eu decoro muito bem as letras das canções, como é o caso de “O Calhambeque”. Quer ver: “Mandei meu Cadillac / Pr'o mecânico outro dia…” E foi por ali adiante declamando, pois, como já vos contei, o António perdia a voz nas vésperas das aulas de código, no próprio dia e ainda no dia seguinte.
Ora isso originou uma interrupção prolongada na volátil carreira do cantor de bairro. Mas nada o arredava da teima. Queria tirar e carta. E a isso se dedicou de corpo e alma, pois artista sem carro é como um futebolista sem chuteiras, padre sem batina, guarda sem farda, ou…
Mas voltemos à aflição compulsiva do António, no preciso momento em que o interrompemos, estando ele a declamar para o patrão a letra de “O Calhambeque”: “Com muita paciência / O rapaz me ofereceu / Um carro todo velho / Que por lá apareceu…” À medida que prosseguia na sua declamação, os olhos iam-se esbugalhando, as veias do pescoço engrossando e os cantos dos lábios ficando brancos com o acumular de saliva. Mas ele nada de desistir: “Confesso que estava / Até um pouco envergonhado… O Calhambeque, bip-bip / Buzinei assim o Calhambeque / Bi Bidhu! Bidhubidhu Bidubi…” E ainda: “E logo uma garota / Fez sinal para eu parar / E no meu Calhambeque / Fez questão de passear…” Entretanto começou a ficar escarlate, com os olhos totalmente esbugalhados, a tremer de nervoso, a inchar ainda mais as veias do pescoço, quase à beira do desfalecimento. Mas não desistiu, pois tinha de se convencer e convencer o patrão, que era bom de memória e que os testes do código é que eram fora do comum, uma coisa do outro mundo.
“E muitos outros brotos / Que encontrei pelo caminho / Falavam: Que estouro / Que beleza de carrinho…" E o António a inchar e a perseverar, a perseverar e a inchar, a declamar, a perseverar, a inchar, a avermelhar, a salivar e a declamar: “Mas o meu coração / Na hora exacta de trocar / Aha! Aha! Aha! Aha! Aha!...”
E o António a inchar como a rã que queria ser boi, a avermelhar, a perseverar, a salivar, e a declamar: “Meu coração ficou com / O Calhambeque / Bi Bidhu! Bidhubidhu Bidubi…”
O senhor Alberto aflito, vendo que o António estava mesmo à beira de estoirar, tentou terminar com a loucura: “Pára rapaz ou ainda te dá alguma coisa. Pára.” Mas ao António já nada o fazia parar. Conduzindo o seu “Calhambeque”: “Bem! Vocês me desculpem / Mas agora eu vou-me embora… / Bye! Eh! Bye! Bye!” E desmaiou.
“Ai que o menino Toninho apagou-se”, gritou a Dona Augusta que tinha vindo de propósito comprar umas cuequinhas de renda, uma combinação cheia de folhos, um curto saiote vermelho, umas meias de seda e umas ligas para prender tudo aquilo de forma a parecer uma actriz de cinema americano.
“Ai que o menino Toninho apagou-se”, exclamou novamente, agora gemendo e tremendo de susto, a Dona Augusta, uma das suas fãs mais devotas, pois o António, com as suas cantigas de amor e as suas sugestões de roupa interior, tinha dado alma e inspiração a um casamento que teimava em entrar no tédio e na modorrice.
Por entre os sorrisos nervosos dos colegas, a aflição da Dona Augusta e a estupefacção de alguns estudantes liceais que se juntaram por causa dos gritos que escutaram vindos do estabelecimento comercial, o senhor Alberto ainda teve o sangue suficientemente frio para ir diligenciar um copo de água com açúcar ao café do outro lado da rua e assim, doce e fresco, o serviu a um António exausto que ia explicando à Dona Augusta e novamente ao patrão: “Eu tenho boa memória, não sou tonto nenhum. Os testes do código é que me dão cabo dos nervos. Custa-me a atinar com a resposta correcta. É meio por meio. E assim reprovo. Na condução já me desembaraço, o código é que é uma maçada. É meio por meio. Confundo-me nas respostas, misturo vários sinais e não acerto com o que eles pretendem como resposta. E isso dá-me cabo dos nervos. Eu, que até decoro as letras das canções mais difíceis, como é o caso de “O Calhambeque”, desunho-me para acertar uma resposta à primeira. Aquilo é meio por meio. Se acerto uma, erro outra logo de seguida. É um tormento. Ainda há pouco disse, e agora repito, pois nunca me tinha dado conta, que uma coisa é ler, mas entender é outra bem distinta. Eu até leio aquelas frases dos testes todas de enfiada, mas depois aquilo baralhasse-me tudo na cabeça. Muita gente chumba no código porque não descobre o sentido das questões. Eu é meio por meio. Umas vezes exigem uma resposta e noutras pretendem outra diferente, sem que eu descortine o motivo da discrepância. Aquilo é de doidos. Mas vou perseverar naquilo até que me saia tudo direitinho. Vou. Vou e vou. Eu decorei “O Calhambeque” do Roberto Carlos sem ajuda de ninguém, nem dum papel. Foi só ouvi-la algumas vezes directamente da telefonia e zás, entrou direitinha na minha cabeça. A letra da canção do Roberto é constituída, fora a parte falada, por sete estrofes, tendo as três primeiras nove versos, a quarta dez, a quinta novamente nove, a sexta onze, a sétima e a oitava oito. Além disso as rimas são fracas. Ao todo são sessenta e cinco versos, fora a parte falada. E tudo isso decorei e canto sem esforço nenhum. Mas o código, o código…”
Foi então quando a Dona Augusta teve uma lembrança das boas: “Deixe estar Toninho, que eu vou falar com o meu marido, que é unha e carne com o Senhor Baptista, o dono da Escola de Condução, e logo se há-de ver o que se arranja. O menino sabe que eu sou grande amiga sua. O que fez por mim não tem preço. Só eu e o meu Jeremias é que sabemos o bem que foi para nós tê-lo conhecido, ter escutado o seu repertório e aceitar os seus conselhos para a minha lingerie. O Toninho é um anjo. Não se aflija mais que tudo se há-de arranjar a contento de todos. Agora descanse lá um bocadinho e cante-me “Eu te darei o céu”. Se faz favor.”
“Perdoe-me Dona Augusta, mas hoje não consigo. Tenho o fole cansado”, rematou o António.
“Não faz mal, fica para a próxima”, disse despedindo-se a Dona Augusta.