O cansaço dos alfaites
Não dou por mal empregues todas as horas que caminho no parque Polis da cidade. O Tâmega tranquiliza-me, as poucas árvores fazem-me desejar que se plantem mais e o sol de fim de tarde sempre me fascinou. Os passeios são um bálsamo para os olhos, para os pulmões e para a corrente sanguínea.
Agora que a água está mais estagnada, costumo reparar nos alfaiates (e pensar que cheguei a acreditar que estes insectos de patas longas só deslizavam por cima de água límpida e corrente, quem me manda a mim ser tão crédulo) a correr de um lado para o outro e, por cima, reparo em vários enxames de mosquitos. Por vezes oiço um que outro estampido, que presumo serem peixes a saltar na água. Nas margens consigo avistar algumas rãs. Torrões de lama desprendem-se da margem e ouve-se um borbulhar por debaixo da água. Folhas secas, como memórias, movem-se lentamente à superfície. Quase sempre paro para ficar a olhar para elas. No espelho turvo do lençol de água, os ramos das árvores, e os pássaros que os ocupam, perdem a possibilidade de se refletirem.
Cada vez há mais pessoas que se deixam arrastar pela indiferença. Como se sofressem de um cansaço prolongado. Por isso tendemos a ver as coisas isoladamente. Fixamo-nos nos contornos, como se nada mais exista para além deles. Tudo vemos e ouvimos instantaneamente. Não há tempo para pensar. Ofendem-nos e nós, em troca, ofendemos. Todos os discursos são jogos de palavras. Tudo nos parece natural: a mentira e a verdade, a mentira como verdade, a manipulação como realidade. Deixamo-nos fascinar pelas minudências, pelos artefactos, pela hipocrisia dos indiferentes, pelo imobilismo. Estamos tão vazios como os quartos de uma casa abandonada.
Ouvimos falar em força. Na força das ideias, na força dos argumentos, na força da razão. Olhamos em volta e a força do argumento de quem nos dirige convenceu-nos que éramos especiais, e que eles, além de especiais, eram superiores. Eram os génios que iam fazer avançar o país, a autarquia, a sociedade. E se não fosse em marcha rápida, pelos menos iriam fazê-lo em andamento um pouco mais lento, mas, também por isso, mais seguro, rumo ao progresso. E isso era música para os nossos ouvidos. Mas eles estavam, e estão, longe da verdade. Apesar de plebeus, dão-se ares de uma certa nobreza que sempre foi alvo de algumas concessões. Lembram-me os aristocratas britânicos que até meados de século passado tinham autorização legal para mijar, se tivessem vontade, nas rodas traseiras das carruagens. Eles e os seus cães… de fila.
Noto que as pessoas nunca se observaram umas às outras com tanta hostilidade como nos dias de hoje. O povo gosta de opinar e de agitar bandeiras e de se manifestar. Mas quando se trata de defender os seus interesses é uma nulidade objetiva. Não exige, mendiga, deixa tudo nas mãos dos outros. Com o desempenho político do governo, e da autarquia, acho que descobri o que torna idêntica a expressão dos portugueses: é o equívoco. Sentimos que fomos iludidos. Fizeram demasiado ruído em volta das propostas concretas. Resta-lhes a insustentável leveza da vacuidade.
Eu sei, todos sabemos, que quando alguém se vê cercado por rostos calorosos nas campanhas eleitorais, muitas das nossas dúvidas e objeções tendem a desaparecer. Mas agora também sabemos que quase todas as mentiras e hipocrisias são assim. A verdade política é momentânea. Isso é notório no olhar dos atuais dirigentes, neles não há um pingo de razão. Sentimos que erramos. Só não sei se há tempo para voltarmos a errar.
Não consigo suportar a ganância, a inveja, a gorda satisfação da vanglória, os ódios e destruições, a falsidade, os rancores. A minha capacidade de tolerância está cada vez mais baixa. Por isso sinto que se torna necessário escolher para nos dirigir alguém com capacidade para olhar os nossos problemas com mais clareza, que não se rodeie de indefinições, arranjismos, que se liberte, e nos liberte, de oportunistas, medíocres, conspiradores e judas, sempre prontos a vender o líder por trinta dinheiros. Além disso, também devemos evitar deixar-nos comover por aqueles que derramam lágrimas como os pinheiros largam resina.
Dizem os historiadores que nos tempos da rainha Isabel, os barbeiros tinham alaúdes e guitarras na barbearia para que os cavalheiros que estivessem à espera pudessem cantar e tocar. É que demorava muito tempo a arranjar as barbas e os caracóis que se usavam na época. É tempo de ganhar tempo e conseguir que as instituições públicas despachem o serviço de forma célere e competente. É que o povo não sabe tocar guitarra, só bombo e ferrinhos.
Relativamente ao poder autárquico, penso que a maioria dos vereadores considera que ficar sentado é poder. Os reis ficavam de traseiro sentado no trono, enquanto os plebeus permaneciam de pé. Pascal disse que as pessoas se metem em sarilhos porque não conseguem ficar quietas no quarto delas. É bem possível que o vice-presidente da Câmara nos venha dizer que roguemos a Deus para nos ensinar a ficarmos quedos como penedos. E esperar para votar nele. Mas essa é uma aposta numa raspadinha que quase nunca sai e quando o bilhete vem premiado o valor pecuniário é anedótico.
Quanto ao actual presidente da autarquia, é possível que conheça bem aquele quadro de Henri Rousseau (A Cigana Adormecida) onde a viajante cigana árabe adormece ao lado do bandolim enquanto um leão olha para ela. Somos todos levados a pensar que o leão respeita o repouso da mulher, que a imobilidade da cigana controla o leão. Mas, a ser assim, isso é magia. E a magia é sempre um truque bem exercitado.
É muito provável que o atual poder autárquico tenha adormecido por cansaço. Mas isso não nos pode levar a pensar que basta acordá-lo para que faça aquilo que não foi capaz de fazer até ao momento. O seu tempo de validade foi já foi ultrapassado. Por isso temos de atuar como nos aconselham os bons hábitos. Aproxima-se a hora da sua substituição. É a lei natural da vida. Todos os ciclos têm o seu fim útil. E este não é exceção. Fazemos votos para que não o tornem inútil. Há que renovar a esperança. Há que mudar de vida. Há que encontrar novos protagonistas. Há que construir uma alternativa válida e coerente. E a tão árdua tarefa não admite exclusões.