A toleima do D.
Ontem o D. chegou ao pé de mim possesso. Nem sequer pediu café, ou umas águas ou o que quer que fosse. Desde que o “seu” primeiro-ministro anunciou ao país que lhe ia cortar, desde já e dizem que para sempre, quatro meses de reforma em dois anos, anda mais amuado do que um peru. E se fosse só a ele, ainda vá que não vá, mas pensando que a sua esposa também é reformada e que os dois filhos são professores e estão casados com duas funcionários do Estado, dá para ver a razia que vai lá pela família.
O R. atirou-lhe de supetão: “É-te muito bem feito. Quem é que te mandou andar a agitar a bandeira do Pedrinho e a soprar no apito laranja. Mais te valia teres ficado em casa a tratar dos netos e a dares carinho à mulher. Vais ter de engolir o apito. Ai vais, vais. Devias era pedir explicações à senhora que ajudaste a eleger para o parlamento. Que pronta se colocou ela ao lado das propostas dos terríveis cortes aos funcionários públicos. Também não lhe restava alternativa. Para fazer papel de deputada sentada e deixar correr o marfim, mais valia termos elegido uma estátua, sempre ficava mais barata ao Estado. E com a crise que por aí grassa, todos os tostões poupados para cortar nas gorduras do Estado são bem-vindas. É cada vez mais consensual que dois terços dos deputados são apenas verbos de encher. Por isso, o número de parlamentares deve ser drasticamente reduzido.”
Mas o D., como se tivesse enlouquecido definitivamente, continuava a toleimar na sua ladainha. Tive pena dele, apesar de ser um laranjinha dos quatro costados. Mas, confesso, também não tive tempo para ter muita, porque para mim, e para a maioria dos meus, também os cortes são golpes duros de encaixar depois de uma vida inteira dedicada ao trabalho e à educação dos meus filhos e dos meus alunos. Por isso, apeteceu-me repetir-lhe as palavras do R., mas, quando olhei para ele e o vi a pressagiar a litania, calei-me. Para sofrimento já basta o que basta. Além disso, apesar de laranjinha, é meu amigo e os meus amigos são meus amigos e pronto.
Depois apareceu o F. que lhe disse o mesmo que o R. lhe tinha dito há pouco. Mas quando o viu a rezar baixinho, comoveu-se e meteu a viola no saco. Logo a seguir apareceram os restantes elementos da nossa tertúlia e o fado continuou.
“Mentirosos, impostores, aldrabões, intrujões…”, pisava e repisava lentamente o D. como se estivesse a rezar.
“Está visto”, disse o R. com o seu ar de menino traquina, apesar de ter as barbas mais brancas do que o Pai Natal, “que vou dedicar-me à agricultura. Talvez consiga produzir alimentos que me deem para comer e vigor para os vender no mercado negro. Poderei, dessa forma, adquirir alguns livros para a minha biblioteca e comprar leite achocolatado para a minha neta, pois são dos poucos produtos que ainda não são taxados com a percentagem máxima do IVA.”
E o D., na sua obsessão: “Intrujões, aldrabões, impostores, mentirosos…”
O R. tirou do bolso o “Borda d’água” e pôs-se a ler: “Está na altura de, no Minguante, estercar as covas para as árvores a transplantar na primavera, plantar as árvores de fruto e podar, com corte diagonal, as árvores resistentes ao frio. Amanhã de manhã vou preparar os canteiros para a sementeira de alface e cebola e vou, ainda, semear em local fixo agrião, cenoura e rabanete. Depois dos Santos vou plantar os morangueiros, os alhos e as cebolinhas e colocar em local definitivo as couves de primavera e a alface de inverno.”
E o D. com os seus olhos mortiços continuava na toleima: “Intrujões, aldrabões, mentirosos, impostores…”
Pensei, com tristeza, que já não podia contar com o D. para me ajudar no jardim. Ele que sempre foi muito bom a estrumar e a semear as flores, a plantar roseiras (por favor, não antevejam aqui nada de irónico), crisântemos, lírios, narcisos, tulipas, açucenas, jacintos, junquilhos e anémonas. Além de ser ainda exímio a colher dálias e rosas.
Juro que me deu pena vê-lo naquele seu estado catatónico. E ele possesso, desiludido e ultrajado, toleimava: “Impostores, aldrabões, mentirosos, intrujões…”
De novo o R., crítico leitor do “Borda d’água”, tentou animar o D.: “Deixa-te lá disso. Descansa que isso, mais do que obra dos homens, é obra dos deuses. Esta maroteira estava escrita nos astros desde há muito tempo. Célia Cadete, no “Juízo do Ano”, dá-nos conta da profecia: “O ano de 2011 entrou num sábado, que é dia consagrado a Saturno, um planeta de movimento lento que leva cerca de 30 anos para completar a sua órbita. Saturno traz destruição, fome, carestia, inquietação, miséria, angústia e tristeza; tem domínio sobre os velhos, os caducos e solitários, os tristes e melancólicos. O ano de 2011 será dominado pela carestia; mas tenhamos fé e lutemos com determinação para reverter a situação.”
Aqui, o desavergonhado do L. meteu a colherada: “Por isso é que o D. suou as estopinhas na campanha eleitoral da candidata do PSD, para, com a sua determinação, que propagou aos quatro ventos, ajudar a reverter a situação.”
“Qual determinação qual carapuça”, perseverou de novo o R., “deixem é falar a Célia Cadete: “O inverno será longo e frio e com pouca chuva. A primavera será ventosa. O verão irá ser bastante húmido e o outono prevê-se seco e fresco.”
“A mulher acertou em tudo. Célia Cadete para o Parlamento, já!”, gritou entusiasmado o L. “Pelo menos sabe o que diz. E di-lo sem papas na língua. Para estátua de pensadora bem nos chega a outra.”
E o D. com os seus olhos desmaiados insistia na tarouquice: “Aldrabões, mentirosos, intrujões, embusteiros…”
“Ó minha Pátria bem-amada, que bons filhos pariste”, concluiu o R. Todos nos rimos com o sorriso mais amarelo que há no mercado europeu.