Abandonos
Pus-me a pensar nas probabilidades de eu existir e fiquei perturbado com os cálculos: uma em dez biliões. Uma para o número de Avogrado: 6022 vezes 10 elevado a 23. E pensar que há ainda pessoas que desperdiçam este autêntico milagre. E porque raio é que eu tinha de nascer em Portugal e, como se ainda fosse pouco, porque razão nasci no concelho de Chaves? Ele há coisas do arco-da-velha. Quando pensei em tudo isto estava junto ao rio, que corria manso e cansado, enquanto lá no alto as estrelas da noite brilhavam como se me quisessem dizer alguma coisa. Elas lá no cimo, tão distantes. Porra! A estrela mais próxima está a quarenta biliões de quilómetros. A arder inteirinha ainda antes de os dinossauros andarem por aí ao deus dará. E vai continuar a arder, inteirinha, mesmo quando já não restar nenhum ser humano na terra. Milhentas galáxias, biliões de estelas. Por mais pequeno que me sinta, nunca estarei perto da verdade. Afinal sou um ponto, um átomo, um grão de areia. Porra!
Assim pequenino, fui, eu mais os meus amigos, dar uma volta pela cidade. Quando chegámos perto do quiosque do Zeca, o R., visivelmente irritado, e enquanto esticava o indicador na direcção do D., vociferou como a seguir transcrevo, no entanto com algumas omissões para não afrontar os leitores mais sugestionáveis: “Ao que isto chegou. Em tempos de crise, a Câmara gasta uma pipa de massa em obras para fazer subir o pavimento da rua de Santo António cerca de dez centímetros, no sentido de eliminar o desnível existente entre a faixa central e as faixas laterais. A verdade é que não se percebe a importância da obra, pois vai continuar a estar aberta ao trânsito, que, na minha perspetiva, devia fechar. Se a via estivesse em mau estado de conservação, ou se o momento fosse de vacas gordas, ainda vá que não vá. Agora, em tempo de torinas escanzeladas, transforma-se numa afronta, num exercício de gestão muito mal calculado, num desperdício de verbas que podiam ser aproveitadas em obras muito mais importantes. Assim, é chover no molhado.”
Abatido, o D. encolheu os ombros e pôs-se a assobiar o hino do PSD.
O F., muito sério, deitou mais achas para a fogueira: “A nossa Câmara…” “Nossa, salvo seja”, retificou o R., enquanto o D. se ria de mansinho e lembrava: “A vossa, se a memória não me falha”. “Prontos”, relativizou o F., “a autarquia flaviense, depois de adquirir o Solar dos Montalvões, abandonou-o com requintes de malvadez. E ali está ao abandono, lembrando-nos que esta câmara, que teima em nos desgovernar, não tem norte…”, “Nem sul, continuou o L.”, “Nem este”, adiantou o R., “Nem oeste”, disse eu para não ficar fora da jogada. “Age conforme os ventos e as marés. Não tem uma matriz orientadora. Veleja aos ziguezagues. Gere mal o património, que, sendo da autarquia, é de todos nós.” Com cara de caso, o F. lançou a seguinte questão: “Que mal é que nós fizemos à autarquia para ela desbaratar os dinheiros públicos?” E rematou: “Tamanho atentado ao património é mais do que incúria, é desleixo e constitui uma afronta ao bem senso dos flavienses e ao bom nome da instituição.”
Aparentemente indiferente, o D. encolheu os ombros e continuou a assobiar o hino do PSD. “Que te faça bom proveito”, invetivou-o o R., no que foi secundado pelo F.
Em frente ao assador das castanhas assadas, o R., depois de comer uma bem quentinha, voltou à carga, como é seu mester: “Faz impressão saber que o espaço construído propositadamente para receber a Feira dos Santos, foi abandonado, sem qualquer tipo de explicação plausível. Desta vez, a Câmara despachou os divertimentos para a Madalena.”
Como as castanhas estavam boas, cada um comeu várias. O R., sempre atento aos pormenores, levou-nos à Lapa, abriu uma garrafa de tinto da Quinta de Arcossó, com rótulo da Associação de Fotografia Lumbudus, que trazia no carro, distribuiu um copo de plástico a cada um e meou-os de vinho. Depois das castanhas, soube-nos pela vida. “Boa pinga!”, exclamou o F. Todos concordámos. Até o D., que, consolado, meteu, durante algum tempo, o assobio ao bolso.
O R., que tinha enchido o seu copo, seguindo o dito popular, quem parte e reparte, etc., encorajado pelo corpo e pelo paladar do excelente vinho da nossa região, voltou à conversa: “Mete dó ver a malfadada Plataforma Logística e o espaço industrial construído perto de Outeiro Seco, que custou vários milhares, ao abandono. Faz lembrar os antigos espaços evacuados depois da crise industrial do século passado. Apenas com a agravante de que na nossa terra isto acontece em plena era pós-industrial. A visão destes senhores não bate certo nem com o tempo nem com o modo. Resumindo, esta autarquia é a Câmara do abandono: abandonou o Solar dos Montalvões, abandonou o espaço da Feira dos Santos, abandonou a Plataforma Logística, o Parque Industrial e…”
“Abandonou as ideias, a confiança, as pessoas e a vontade de mudança a que se propôs quando foi escolhida pelo Partido e eleita pelos flavienses”, rematou o D., talvez já um pouco entusiasmado pelo tinto de Arcossó.
Eu, também já um pouco animado pela pinga, concluí, para espanto de todos: “Está provado que a Câmara de Chaves não sabe o que o povo quer e o povo também já desistiu de tentar saber o que é que a Câmara verdadeiramente pretende.”
“Boa malha”, disseram os meus amigos, enquanto o D. assobiava, trocista, o hino do seu partido.