O Homem Sem Memória
88 – O LP de Gilbert Bécaud chegou ao fim e, momentos antes de se levantar da cadeira para ir substituí-lo pelo Johnny Hallyday, de seu verdadeiro nome Jean-Philippe Smet, também conhecido como o Elvis Presley francês, disse na sua voz suave: “Xeque-mate”. O José ficou fulo, mas disfarçou muito bem. O José se fosse a ficar fulo e a admiti-lo por perder com o Fernando, tinha de ser seu inimigo, pois era vencido por ele em tudo. Iniciaram outra partida de xadrez. O anfitrião tornou à conversa.
O seu irmão do meio, vendo que o mais velho, por imposição partidária, andava metido em várias guerras sem conseguir definir bem o inimigo, resolveu questioná-lo diretamente, numa ocasião em que veio à metrópole em serviço oficial. O que é que o aconselhava a fazer, pois, como antifascista que era, estava igualmente contra a guerra. Mas também não se via enfiado numa farda a coçar os tomates enquanto os seus camaradas de armas matavam e morriam numa guerra sem razão e sem justificação.
O militar, triste como as manhãs de inverno chuvoso, disse-lhe que só existiam dois caminhos: ou desertava ou entrava em contacto com o Partido para as suas estruturas dirigentes estabelecerem as respetivas ligações com as distintas células que existiam espalhadas pelo país e pelas colónias. Depois era seguir o guião normal: sujeitar-se às orientações, deixar-se dirigir, acatar com espírito de militância as diretivas do coletivo partidário. Mas o irmão do meio insistiu com o mais velho que não conseguia fazer o papel de traidor passivo. Parecia-lhe uma iniquidade.
O irmão do meio em discurso direto ao interlocutor: “Isso é bom para ti que és obediente e disciplinado. Aceitas tudo o que o Partido te diz sem discutires uma vírgula que seja. Eu não consigo ser assim. Ou estou dentro ou estou fora.” O irmão mais velho: “Mas…” O irmão do meio: “Comigo não há mas nem meio mas. Comigo é sim ou sopas”. O irmão mais velho: “Tu é que sabes. A vida é tua. Mas se optares pela deserção tens de te preparar para não vires a Portugal durante muito tempo. Vais deixar de poder ver a família. Vais ter de abandonar o curso. Vais ter de viver como um qualquer emigrante, com a agravante de que se te apanham por cá em visita à família prendem-te e despacham-te, sem dó nem piedade, para a pior frente de combate, onde se morre todos os dias vítima das minas antipessoais ou anticarro. Mas tu é que sabes. A vida é tua. E desengana-te se pensas que podes contar lá fora com o apoio do Partido. O Partido não liga a desertores.” O irmão do meio: “O teu partido é muito solidário. Dá-lhe os meus melhores cumprimentos.”
O irmão do meio do Fernando ainda fez a recruta, tendo em vista conseguir não ser mobilizado para o ultramar, mas quando viu o seu nome na lista dos convocados para a Guiné, nessa mesma noite meteu num saco o mínimo de roupa possível, que era toda a que tinha, e pôs-se a caminho de França sem passar por casa dos pais.
Em Paris, começou a labutar como operário numa fábrica de automóveis. Mas lá trabalhava-se a valer. Por isso, e devido aos estudos que tinha e à sua visão antifascista e de esquerda, tentou ir para um qualquer país de Leste trabalhar nalguma rádio ou coisa do género. Experimentou falar com o Partido. E o Partido veio até ele na figura de um homenzinho pequeno e roliço que escutava muito bem mas não dizia palavra. No final sempre explicava: “Vou contatar a direcção e logo lhe digo alguma coisa, camarada.” Cinco vezes o desertor à guerra colonial, tanto na perspetiva do regime como na perspetiva do Partido, falou com o homenzinho e cinco vezes o homenzinho lhe repetiu a resposta: “Vou contactar a direcção e logo lhe digo alguma coisa, camarada.” Um dia soube, por linhas travessas, que nem sequer o admitiam como simpatizante, quanto mais como militante. O Partido, tal como Roma, não pagava a traidores.
Por isso, o irmão do meio do Fernando começou a escrever para a família desde França sob pseudónimo, trabalhava como operário especializado na fábrica de carros, enchia-se de namorar com francesas, portuguesas, espanholas e italianas. Comprou um carro, alugou um apartamento condigno, comprou boa música, muitas revistas de BD que, depois de utilizadas quanto baste, enviava ao Fernando sempre com os olhos rasos de água.
Com os olhos rasos de água ficou ainda o Fernando e o José também fungou o nariz uma ou duas vezes. Quando olharam um para o outro, e ainda antes de beberem mais um copinho de vinho fino, o Fernando disse para o José: “Xeque-mate”. De novo o José ficou fulo, mas tornou a disfarçar muito bem. O José, como já dissemos, se fosse a ficar fulo e a admiti-lo por perder com o Fernando, tinha de ser seu inimigo, pois era vencido por ele em tudo.
Preparavam-se para iniciar mais uma partida de xadrez, quando o senhor Carvalho tossiu nas escadas.
Desta vez, o pai do Fernando não cantou o fado nem regeu a sua orquestra imaginária. Desta vez falou de livros. Ou melhor, falou de dois livros. O senhor Carvalho quando falava de livros falava sempre de dois livros: “Os homens e os outros” de Elio Vittorini e “Os Miseráveis”, de Vitor Hugo.
No primeiro fascinava-o o ponto de vista sentimental, onde o personagem é dilacerado pelo amor impossível em relação a Bertha, mulher casada que não pode decidir abandonar o marido. Depois falava da luta entre fascistas e antifascistas, numa relação de ódio e morte. E tão desumana que vários resistentes antifascistas, depois de vários atentados mortais, são feitos prisioneiros e lançados vivos aos cães que os devoram com requintes de malvadez, perante o olhar indiferente dos maus, que são os fascistas. “Todos eles são maus, todos, todos, todos”, dizia o senhor Carvalho incendiado e contaminado pelo romance do escritor italiano.
“Os homens e os outros” foi escrito no meio da luta partidária. Por isso, o romance é uma celebração da força. E o Fernando, dentro do seu rigor, lembrava sempre ao senhor Carvalho: “Então a cena dos cães não acontece porque um vendedor, em auto-defesa, matou a cadela preferida do general Clemm e, por isso, foi lançado aos cães do militar para pôr eles ser dilacerado, sob o olhar regalado do líder fascista?”
“Vai tudo dar ao mesmo, Fernando. Todos os fascistas são maus, todos sem exceção”. E, entusiasmado, cuspindo alguma saliva, mexendo a papada e agitando as suas gordas mãos, contava sempre a cena onde o En 2, o personagem principal, e Bertha, a sua indefinida amante, assistem à cena monstruosa onde alguns cadáveres de civis mortos são lançados na calçada em retaliação pelos alemães abatidos numa emboscada. Entre eles estavam uma menina, um velho e dois rapazes de quinze anos.
Cansado, pelo agitar do corpo e pelo vibrar da mente, pedia um copo de tinto à esposa e punha-se seguidamente a falar de Jean Valjean, a figura que se destaca em toda a história de “Os Miseráveis”, preso por ter roubado um pão para alimentar a família e que, em consequência da sua tentativa de evasão, vê a sua pena permutada para trabalhos forçados nas galés. Um dia Jean Valjean é libertado. O bispo recolheu-o. Durante a estadia, Jean Valjean repara no móvel do quarto do bispo, pois nele são guardados os castiçais e um faqueiro de prata. À noite, enquanto todos dormem, Jean Valjean levanta-se, pega no faqueiro de prata e vai-se embora com ele. Mas não vai longe.
No dia seguinte, três polícias levam-no a casa do bispo para entregar o faqueiro e certificar-se de que a história do Jean Valjean corresponde à verdade. Depois aparece na história uma menina e Javert, um inspector de polícia, que não mais deixa de o perseguir.
“A história é a puxar para o dramático, mas o que no livro é interessante, e inesquecível, até mais do que Jean Valjean, é a sanha perseguidora do polícia, como se fosse um cão de caça. Sempre com os olhos postos na presa.” Depois parava de falar e fazia que adormecia. Ou adormecia mesmo. Quando assim acontecia, a dona da casa dava a noite por terminada.
Quando saiu de casa, o José, ficou com pele de galinha e com os cabelos em pé. Primeiro pensou que por ali andava um lobo e a respectiva família. Quando olhou para trás viu um vulto aproximar-se: era o Virtudes. “Donde vens?”, perguntou-lhe. Ele disse que não lhe podia dizer. “Coisas de bruxos, caro José.” Mas como o cemitério não ficava longe e a igreja também não, pensou que talvez o seu amigo estivesse a falar verdade. E a prudência dizia-lhe que se fizesse desentendido. Acompanhou-o até uma encruzilhada onde um macho taludo o esperava inquieto espanando moscas notívagas com a cauda. Viu-o montar, olhou para os seus olhos carregados de escuridão e foi para casa.
Na segunda-feira, aconteceram três casos paradigmáticos que confrangeram a vizinhança e a cidade. Uns mais do que outros, claro. Mas todos eles com um elo de ligação: o de serem vizinhos da família Carvalho. O bufo da Pide queimou as mãos num incêndio ficando praticamente paralisado. O filho do seu vizinho do lado, dono de uma sapataria, foi abalroado e esmagado dentro da carrinha que conduzia, pelo comboio quando tentava atravessar a passagem de nível. E outro vizinho, que vivia paredes meias com a linha do comboio, foi preso por estuprar a sua filha mais nova, depois de já ter estuprado tudo o que era rapariga da família.