O Homem Sem Memória - 90
90 – Quem foi e não voltou foi o José, que se viu expulso do seminário sem apelo nem agravo.
A sua mãe nem queria acreditar. Quando o viu entrar pela porta dentro escanzelado como um cão gritou “abrenúncio” e desmaiou. Os seus irmãos começaram a chorar, o cão a ladrar, os porcos a cuincar na corte e os vizinhos encheram a pequena casa na tentativa de acudirem ao desconchavo da situação. Borrifaram o rosto da Dona Rosa com água fresca, chegaram-lhe às narinas um frasquinho de sais revigorantes e até lhe deram pequenas estaladas na cara, mas ela nada de despertar. Parecia morta. Mesmo o José, que sabia da pose teatral da sua mãe neste tipo de situações, começou a ficar preocupado. Desta vez o chilique parecia sério.
E era a sério. Demorou algum tempo e muito trabalho a despertar a Dona Rosa. Mesmo os vizinhos, e até o cão, tiveram dificuldade em reconhecer o José. “Pareces um pedinte”, disseram-lhe os vizinhos, no que foram secundados pelo latir do cachorro e pelo choro compulsivo do seu irmão Joãozinho que aparentava ter visto o diabo em figura de gente.
Em vez de ser a Dona Rosa a tomar conta do seu escanzelado filho, foi o José quem teve de apaparicar a sua apavorada mãe, que se fartou de chorar e lamentar a sua triste sina. Até este filho, que julgava predestinado ao sucesso eclesiástico, pois tinha falado na sua barriga, teimava em infernizar-lhe a vida.
Tudo eram contrariedades: o pai longe e os filhos a crescerem e a precisarem cada vez mais de comida e roupa e livros para irem para a escola… e o pai longe e os coelhos que lhe morriam com o chamorro e as galinhas que punham cada vez menos ovos apesar de comerem o dobro do farelo e do milho… e o pai longe e os porcos que não medravam e as terras a necessitarem de serem estrumadas e lavradas… e o pai longe consumindo muito do dinheiro em tabaco e vinho.
“Só me apetece fugir para o meio do monte e gritar, gritar, gritar. E morrer. Mas depois quem é que tomava conta dos meus filhinhos. O teu pai de certeza que vos deixava morrer à fome”, lamentava-se a Dona Rosa inconsolada.
Nessa mesma noite foi morta e cozida uma das galinhas que teimava em engordar e em fazer greve de zelo à nobre função de poedeira. A vizinha do lado encarregou-se de tudo. Mesmo o José, que há já muito tempo que fazia voto de jejum, alambazou-se com o pitéu. Mas vomitou-o pouco tempo depois. De manhã acordou febril e deprimido.
Já a Dona Rosa superou o choque, refez-se do susto, recuperou as forças e começou a sua magistratura de influência, pensando que dessa forma podia fazer com que o filho voltasse para o seminário. Mas o que Deus separou jamais os homens poderão unir.
Pensava ela, e bem, com o seu apurado sentido materno, que o primeiro passo a dar seria no sentido de empreender o enchimento do exíguo espaço que se encontrava entre a pele e o esqueleto do filho.
Durante várias semanas, o José esteve sob rigorosa vigilância maternal. Ao mesmo tempo que a Dona Rosa alimentava, com rigor e denodo, as galinhas, os coelhos e os chinos, e cevava os dois recos na corte, administrava igual trato ao seu primogénito. E tão bem o fez que os recos e o José começaram a medrar a olhos vistos. O povo, lá na sua imensa sabedoria, bem diz, para quem o quer ouvir e atentar nas suas palavras, que “não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe”.
Quando no final do mês o guarda Ferreira veio de visita a casa ver os seus e entregar parte substancial do ordenado à Dona Rosa, o José já estava com a figura melhorada. Apesar de a mãe dizer aos filhos que tinham de sentir saudades do pai, pois a boa educação assim o exige, os petizes recebiam-no cada vez mais como a um estranho.
De facto, o guarda Ferreira era para os seus descendentes a modos como um desconhecido, pois lá diz o povo, na sua imensa sabedoria, já que para isso é povo, que longe da vista longe do coração. Mesmo o cão, que é animal que reconhece sempre o seu dono, começou a dar indícios do contrário. Até os dois porcos, que foram mercados enquanto o guarda Ferreira esteve em casa de licença, o começaram a estranhar. Isto apesar de por eles ser reconhecido sempre que vinha a casa pois tinha por feitio alimentá-los com o dobro da comida com que a Dona Rosa os esfomeava todos os dias. O mês da engorda tinha significado para as duas cevas o paraíso: comida à farta e cozida no caldeirão. Daí a confusão.
“Tu também necessitas de ser engordado, estás pele e osso”, disse com um tom de relativa bonomia a Dona Rosa ao guarda Ferreira. Ele riu-se, com o seu sorriso triste e enigmático, virou mais um copo e foi para a rua esganar mais um cigarro.
Sentiu-se um homem solitário, um estranho no meio da própria família. A mulher tolerava-o porque lhe trazia o dinheiro com que alimentava, vestia e calçava os filhos. Os filhos mais novos toleravam-no porque assim eram ensinados. Aos animais era indiferente, até ao Texas, a quem tinha criado desde pequeno e só depois trazido para Névoa para guardar a casa e o quintal.
Apenas o José lhe dedicava algum carinho. Pressagiava nele a mesma sina, a mesma incapacidade para lidar com o mundo, o mesmo desajuste social, a mesma obstinação pela verdade, a mesma indiferença pela benemérita hipocrisia dos ricos. Daí o ter sido castigado por não ter aceitado ser um boneco nas mãos de uns reles contrabandistas e do ventas de larego do sargento da GNR. Daí o seu filho ter abandonado o seminário por não tolerar que, em nome de Deus, da verdade e da salvação dos justos, os padres apenas magicassem na sua vida terrena e em conviverem, sem remorso ou arrependimento, com os pecadores e os vendilhões do templo.
A mãe tinha ficado desiludida. Muito desiludida. E ainda assim continuava. Confidenciou-lhe que tinha a firme certeza de que ia ser capaz de convencer o filho a regressar aos propósitos de Deus, aos caminhos da salvação. Ele não acreditava que isso fosse possível. O José, tal como ele, nunca voltava atrás nas suas decisões. Eram orgulhosos de mais. Reagiam mal, mesmo fisicamente, ao recuo. Para eles não existia caminho de retorno.
O José veio ter com o seu progenitor e pediu-lhe um cigarro. O pai olhou-o a direito nos olhos e perguntou: “Já fumas? Olha que a tua mãe não vai gostar. Ainda vai dizer que fui eu que te meti o vício.” “Deixe-a dizer. Comecei a fumar no seminário. Lá o tempo nunca chega para a verdade, mas sobra sempre para os maus hábitos.” “Voltas para lá? A tua mãe pensa que sim. Acredita que te vai convencer a regressares.” “A mãe acredita em tudo. Até em Deus.” “E tu não acreditas?” “Deixei de acreditar depois de ler os livros sagrados onde se fala de Deus como uma entidade supremamente reaccionária, amarga, hierárquica. Quando a Igreja escolheu Deus, escolheu-o obscuro e sombrio. Eu, pelo contrário, acho que Deus deve ser alegre, igualitário, luminoso. Toda a história da humanidade fala de crianças e mulheres violadas, dá conta do ser humano a praticar a desumanidade inata sobre os outros seres humanos. Relata-nos a injustiça que há em tudo. Percebi que não pode existir um juiz bom e justo a organizar isto. É impossível. O que existe, pai, são apenas as regras da Babel, de uma humanidade cruel e egoísta.” “És capaz de ter razão, José. Tu é que sabes da tua vida.”
Olhando um apara o outro com os seus rostos muito idênticos e uns olhos simétricos, deram uma passa enorme no cigarro para encher os pulmões de fumo e expiraram o que restou para o ar fresco do entardecer.
“Venham jantar, a comida está pronta”, chamou-os a Dona Rosa da porta rodeada por todos os filhos, o Texas e um frango garnizé que era agora a mascote da família, devido ao seu comportamento atrevido com as enormes galinhas da mãe.