A memória e a mentira
Depois de ler a entrevista do presidente do PSD de Chaves, enchi-me de coragem e fui à procura de muitas das capas de jornais que colecionei da última campanha eleitoral para as legislativas. Por isso, neste momento em que escrevo, tenho a minha secretária repleta de frases e mais frases ditas e repetidas por Pedro Passos Coelho e os seus apaniguados, neles incluído o taciturno Paulo Portas.
Sobre o lado esquerdo do computador a mini aparelhagem debita o jazz de Carlos Bica & Azul, desde logo porque aprecio muito este género musical, mas também porque gosto da cor azul e de tudo o que ela me faz lembrar.
Sobre o lado direito repousa a última edição de fim-de-semana do Jornal I, onde se lê que ao nível do consumo e da atividade económica recuámos 33 anos, ou seja voltámos a 1978. Notável.
No mesmo periódico, Gonçalo Ribeiro Telles, em entrevista, afirma que “talvez os governantes queiram destruir o país, pois há intervenções de políticos de tal mediocridade que só podem basear-se na falta de conhecimento do país”. E olhem que ele deve saber daquilo que fala, pois foi ministro de Sá Carneiro. Depois olho para a capa do meu jornal regional de referência e dou de caras com o líder do PSD de Chaves e leio distraidamente: “Hoje no desempenho da atividade política exige-se verdade e memória.” Pois.
Entretanto bebo água, olho para o céu azul e presto um pouco mais de atenção ao jazz do Carlos Bica. Sinto que a minha tensão sobe. Fecho os olhos e tento recuperar o ritmo cardíaco que, entretanto, acelerou.
Já um pouco mais controlado, viro os olhos um pouco para a direita, onde o Paulo Bento me observa desde a fixidez da sua fotografia, que é capa da revista do Expresso. Da entrevista, retenho uma frase sua: “Os mentirosos aparecem com ar de boas pessoas nas primeiras páginas.” Depois volto novamente a observar as capas dos jornais dos dias da última campanha eleitoral e confirmo.
Em quase todas elas o atual primeiro-ministro, na altura ainda Pedro Passos Coelho, critica a subida de impostos, o corte nos salários, o desemprego, os benefícios de que goza a banca, as taxas moderadoras no serviço nacional de saúde, o encerramento de centros de saúde e de hospitais e maternidades, o aumento dos passes sociais, a avaliação dos professores, o corte das pensões, o aumento da criminalidade e a taxativa expressão de que é mentira o que os partidos à sua esquerda dizem sobre a sua intenção de cortar no ano de 2012 o 13º mês aos funcionários públicos.
Entretanto olho repetidamente para o selecionador nacional e lembro-me de novo da frase: “Os mentirosos aparecem com ar de boas pessoas nas primeiras páginas.” Depois, através da janela fixo o olhar no céu azul e escuto com algum deleite um solo do contrabaixo do Carlos Bica e consigo que a subida da minha tensão arterial fique em níveis controláveis. Mas mal bato novamente com os olhos nas páginas dos jornais, ela sobe de imediato. Fica aos pulos.
E, no meio da confusão, o líder do PSD de Chaves lembra-me: “Hoje no desempenho da atividade política exige-se verdade e memória.” Pois.
É em nome delas que eu agora lhe retribuo o seguinte: Desde que o PSD tomou conta dos destinos do país os impostos subiram brutalmente, o desemprego não cessa de aumentar a cada hora que passa, os benefícios da banca cresceram vergonhosamente, enquanto os pobres começam a passar fome, as taxas moderadoras do serviço nacional de saúde aumentaram escandalosamente, os centros de saúde continuam a ser encerrados, bem assim como as maternidades e vários hospitais, os passes sociais ficaram ainda mais caros, a avaliação dos professores continua nos mesmos moldes, a maioria das pensões foi cortada, a criminalidade violenta aumenta todos os dias, e o PM não cortou o 13º mês aos funcionários públicos, como acusavam os ranhosos da oposição de esquerda, não senhor, Pedro Passos Coelho cortou o subsídio de férias de 2012, o 13º mês de 2012, o subsídio de férias de 2013, o 13º mês de 2013, e o que ainda por aí virá, não só aos funcionários públicos como também aos pensionistas.
Pois é verdade, “hoje no desempenho da atividade política exige-se verdade e memória.” Por isso é que o PM deste governo foi a Matosinhos dizer que "cada oportunidade perdida é uma pequena tragédia" de que o país nunca recuperará. E rejeitou a ideia de que, em tempos de crise, a arte e a cultura devam ser subordinadas a outras prioridades. Pois, olho de novo para o selecionador nacional e lembro-me de imediato da frase: “Os mentirosos aparecem com ar de boas pessoas nas primeiras páginas.”
Então não é que o PM, que despromoveu a cultura para o nível de secretaria de Estado e que lá colocou Francisco José Viegas para, parafraseando Woody Allen, “acabar de vez com a cultura”, vem agora defender que é "precisamente" em períodos como este que se deve "misturar ainda mais as nossas vidas com as artes e com a cultura"?
Em resposta, um grupo de 52 personalidades lançou em Lisboa um “Manifesto em defesa da cultura”, pois este governo que nos desgoverna segue uma política de “agressão” à Cultura colocando-a numa “situação insustentável”.
Por isso é que, quer à chegada quer à partida de Matosinhos, o primeiro-ministro experimentou o agridoce sabor das manifestações de descontentamento do povo que o apelidou de aldrabão, tal e qual o que chamava ao seu antecessor, no que era apoiado pelos militantes do PSD que também se misturavam no meio da populaça de esquerda para fazer ouvir a voz da sua indignação e bufavam em apitos laranja como se fossem árbitros que não sabem a que dono devem responder. À saída da cerimónia das viaturas oficiais houve necessidade da intervenção policial para acalmar os ânimos mais exaltados. Lá diz o povo: quem com ferros mata com ferros morre.
Volto à entrevista do líder concelhio do PSD e reparo que, além de um extenso debitar de frases feitas e de ideias sem nexo e sem fundamento, a determinado momento, confrontando-se ele com ele próprio, numa tentativa de se desembaraçar de um laço que foi apertando à volta do seu argumentário, pois não explica nada do que devia explicar, apenas se limita a falar mal do governo anterior, como se este não fosse bem pior, ele, o entrevistador e o entrevistado, que empurra a responsabilidade da cobrança das portagens para a o governo antecedente e para a crise, que empurra a responsabilidade do encerramento de valências do Hospital de Chaves para o anterior governo e para a crise, que empurra a responsabilidade da desqualificação do Tribunal de Chaves para o anterior governo e para a crise e que nem uma palavra diz acerca do encerramento do Pólo da UTAD, afirma uma coisa patética: “Não é honesto responsabilizar a gestão autárquica pelas decisões do governo, ninguém pode ser responsabilizado por decisões que não toma, nem sequer é chamado a participar na decisão.”
Valha-nos Deus e a verdade. Olhe que é, senhor António Cabeleira, olhe que é. Desde logo porque o governo é do PSD, e o senhor lidera uma estrutura partidária do PSD. Eu vi-o a distribuir papéis onde o seu querido e estimado líder nacional mentia descaradamente aos portugueses, dizendo que ia fazer aquilo que não está a fazer e a dizer que não faria aquilo que está a fazer. Além disso, o senhor quando é questionado sobre as políticas regionais do governo que ajudou a eleger desculpa-se com a impotência do poder autárquico. Então para que serve o poder que atualmente exerce? Para cobrar a água, contratar uma empresa de recolha de lixo, aprovar projetos de construção civil e por carimbos em ofícios? Olhe, para isso mais vale o Estado Central contratar uns amanuenses e mandar o senhor mais os seus colegas para os seus lugares de trabalho.
Um autarca, antes e depois de tudo, deve pugnar pela defesa da sua terra e da sua gente. Tudo o resto é acessório. Nesta como noutras coisas, a culpa vai morrer solteira. O senhor, em defesa da política autárquica do PSD, na qual tem o seu quinhão de responsabilidade, fala-nos nos investimentos no Palace, no Hotel e Casino de Chaves, onde a autarquia faz mais ou menos o papel de corpo presente.
Eu prefiro falar-lhe no definhamento e na morte do coração da cidade, nas Freiras, na agonia do comércio local, na descaraterização do Jardim Público, no abandono da terra por parte da nossa população jovem, no desaparecimento da agricultura, no definhamento das tradições, na vassalagem e reacionarismo de algumas das vossas iniciativas, no favoritismo, na falta de atividade cultural própria, na insipidez das estruturas de apoio à indústria, no abandono dos projetos relacionados com o ensino superior, etc., etc. e etc.
Existem intervenções feitas pela autarquia que me dão a sensação de que foram pensadas por pessoas que não são de cá. Se são ou não, não sei. O que sei é que é urgente que a orientação da nossa política autárquica mude de mãos. O projeto do PSD está anémico. É urgente encontrar novos protagonistas. Mais do mesmo é que não. O senhor como putativo presidente da Câmara é uma redundância que os flavienses devem evitar. O seu projeto autárquico é mais do mesmo. É um caldo sem sal. Chaves necessita de respirar. Chaves precisa de sangue novo.
Chaves necessita muito mais do que quem ambicione geri-la como um capataz. Chaves reclama quem a desenvolva, quem lhe restitua a alma. Chaves reclama quem a ame.
Novamente regresso ao Carlos Bica, ao Azul e ao Ruy Cinatti: “Somos tão poucos mas vale a pena construir cidades / denunciar a tinta gasta em discursos. / Salve-nos Deus / se não soubermos prever os alicerces…