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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

09
Jan12

A mulher é o futuro do homem.

João Madureira

 

Hoje de manhã acordei com frio. Caiu uma geada à maneira antiga. O nevoeiro torna ainda mais gelado o amanhecer e perturba-me a visão. Neste início de ano, definitivamente tudo está gelado. A terra, as almas, os pássaros, as ruas, os olhares, as mãos e também, a cidade, a região e o país.

 

Uma pessoa olha para a nossa terra, para esta gestão autárquica, para o putativo candidato do PSD e fica gelado. Não sabemos se devemos ficar com mais pena do concelho ou do vice camarário, tão hirto na sua intenção, tão conspirador nos seus almoços e jantares, tão atrapalhado com o mundo que lhe foge debaixo dos pés.

 

Mas não é disso que vos quero falar. Hoje quero falar da morte de Vaclav Havel, homem que aprendi a admirar por ter ajudado a derrubar o comunismo checo com a sua “Revolução de Veludo”. Eu aprecio revoluções de veludo e aprendi a abominar as vermelhas de sangue.

 

Mas também não é disto que vos quero falar: nem das revoluções, nem da atrapalhação do putativo candidato do PSD à autárquica flaviense, nem do seu tempo confundido, nem da sua corrida ziguezagueante contra a preenchida lista de presumíveis candidatos do seu partido ao cargo que tanto ambiciona, mas que cada vez mais flavienses reconhecem que não possui a dimensão certa para o ocupar, com a dignidade que o cargo merece, nem das obras prometidas e não realizadas, nem da infelicíssima plantação de cestos de plástico pela rua de Santo António abaixo, nem dos caríssimos bancos também lá assentados para os transeuntes mais distraídos se porem a observar com cara de caso as entradas e saídas dos clientes das lojas comerciais, do tal comércio local tão amado com palavras de circunstância pelo poder local e tão abandonado à míngua e à sua pouca sorte. Não, não é disso que hoje vos quero falar.

 

Dizem os jornais que Havel morreu aos 75 anos na sua casa em Hradecek durante o sono. Contam que, no dia do seu funeral se ouviram ao meio-dia, todos os sinos das igrejas do país a tocar e de seguida as 21 salvas de canhão disparadas da colina de Petrin, em frente ao Castelo de Praga, sede oficial da presidência.

 

Mas também não é disso que vos quero falar. Ou melhor, não é só disso. Quero-vos falar de um amigo comum que eu e o líder da revolução de veludo possuíamos: Frank Zappa. Dizem que o genial músico foi um dos deuses do undreground checo. Vaclav Havel via-o como um amigo e sempre que lhe apetecia fugir das preocupações presidenciais pensava nele.

 

Dizem que a música que cada um ouve define o seu caráter. Por isso penso que Havel era um homem carismático e imperturbável. Peço desculpa, mas mesmo não querendo, sou levado a pensar na música que o putativo candidato do PSD à câmara de Chaves escuta no dia-a-dia, se é que ouve alguma, e arrepio-me. Lá fora continua o frio, mas estou em crer que não é por isso que a minha pele ficou subitamente eriçada. Sinto que a cada dia que passa aumenta preocupantemente toda uma raiva silenciosa que perpassa a sociedade portuguesa de lés a lés.

 

Mas também não é do governo da nação que hoje pretendo falar. É de música. Schoenberg dizia compreender a dialética mestra da história musical, ou seja, a constante oscilação que existe entre simplicidade e complexidade. Penso que era isso o que na música de Frank Zappa atraía Vaclav Havel. O jogo dialético entre complexidade e simplicidade.

 

Enquanto escrevo observo a rua e fico novamente cheio de frio. Isto apesar de cá dentro estar uma temperatura agradável. Frank Zappa continua a encantar-me. Mas Alex Ross (autor do livro “O Resto é Ruído – À Escuta do Século XX”) avisa-me que Cage se interessou com a “permutabilidade do som com o silêncio”. O som e o silêncio. O som e o silêncio.

 

Mesmo sem querer, lá volta de novo o vice camarário à memória. Será por causa do frio? Talvez. Por alguma coisa é. Dá arrepios pensar nele como presidente da Câmara. Voltar ao silêncio dos dias cinzentos, à rotina da gestão medíocre, às falsas promessas, ao mau gosto, à prepotência, ao golpe baixo.

 

Novamente o músico John Cage me avisa: “Qualquer tentativa para excluir o «irracional» é irracional. Qualquer estratégia de composição que seja totalmente “racional” é extremamente irracional.”

 

“É isso”, penso para mim. É isso mesmo. A putativa candidatura do vice camarário de João Batista foi pensada de forma tão “racional” que só pode ser irracional. Então vamos lá pensar: Se os partidos concordaram em limitar os mandatos autárquicos dos presidentes para dois, foi porque concluíram que mais tempo no poder gera maus hábitos, cria clientelas e potencializa a corrupção e o compadrio.

 

Agora os estimados leitores magiquem na sucessão do presidente pelo seu segundo, que foi vice porque não tinha nem carisma, nem qualidades, para ser primeiro. Ele, que geriu os silêncios, que administrou os favoritismos, que pôs e dispôs dos obséquios de ocasião e das admissões do pessoal, pretende, após 8 anos de tapa buracos e de capataz das conveniências, ser catapultado para a presidência. Tal situação é má de mais para ser plausível. Quem nunca conseguiu gerir o presente com qualidade, porque carga de água é que se acha na condição de protagonizar o futuro?

 

Por isso é que Pacheco Pereira lembra o ditado popular brasileiro: “Quem nasceu para lagartixa nunca chegará a jacaré”. O que na versão transmontana foi traduzido, e muito bem lembrado pelo meu amigo Tupamaro, para: “Quem nasceu para dez-réis nunca chega a ser vintém.”

 

Nestas como noutras coisas, o povo tem sempre a sua razão, pois conhece estes bisnaus há muito, mas mesmo muito tempo. É que a raposa pode mudar de pêlo mas nunca muda de hábitos. 

 

Enquanto faço um interregno com “Blue Train” de John Coltrane (de novo o azul, além disso também sou um homem que gosta de comboios), vêm-me novamente à memória os versos de Ruy Cinatti: “Somos tão poucos mas vale a pena construir cidades / denunciar a tinta gasta em discursos. / Salve-nos Deus / se não soubermos prever os alicerces …

 

Enquanto olho para uma fotografia de Vaclav Havel, Frank Zappa dá-me “Them or Us”. Lá fora começou a despontar o sol. Reconfortado, levanto-me da minha secretaria e vou à varanda. Nova recordação. Desta vez uns versos de Jean Ferrat e Louis Aragon: “O poeta tem sempre razão / Quem vê para além do horizonte / E o futuro é o seu reino / Face à nossa geração / Eu afirmo com Aragon / A mulher é o futuro do homem (…) O poeta tem sempre razão / Quem anuncia a Primavera / Doutros amores no seu reino / Faz renascer as flores / E declara com Aragon / A mulher é o futuro do homem.”

 

Lembro-me com lágrimas nos olhos da minha avó e de todas as mulheres que amei e amo, viro o rosto para a luz e fecho de novo os meus luzeiros enquanto tento aquecer a cara. Tenho no rosto desenhado um sorriso do tamanho da esperança.

 

“O poeta tem sempre razão / Quem vê para além do horizonte / Quem anuncia a Primavera / Faz renascer as flores / E declara com Aragon / A mulher é o futuro do homem.”

                                                                                                                              

Enquanto oiço o trio de jazz Carlos Bica & Azul, faço votos, e desejo do fundo do coração, que cantem comigo os versos de Ruy Cinatti: “Somos tão poucos mas vale a pena construir cidades / denunciar a tinta gasta em discursos. / Salve-nos Deus / se não soubermos prever os alicerces / basta de balancé entre o que é, o que virá, o que não é. / Basta de poetas com as mãos cruzadas / e de operários a cair de sono. / Somos poucos mas vale a pena construir cidades / ou morrer de pé.

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