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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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23
Jan12

O crime não pode compensar

João Madureira

 

O meu amigo R., sub-repticiamente, e mesmo antes que eu consiga começar a minha inevitável preleção, tenta estabelecer uma relação, que ele diz dialética (pudera!), entre o jazz e o marxismo. Eu lembro-lhe das tentativas falhadas de comparar o freudismo com o marxismo e da barraca que deu quando o verdadeiro marxismo (o leninismo) foi experimentado em diversos países. Ele põe cara de caso e atira-me com o argumento de que eu não acredito em nada, que contesto tudo, que até ponho o universo em causa. Digo-lhe que, por favor, não exagere. Explico-lhe que sou a modos como um cozinheiro que consegue, ou pelo menos tenta, transformar os sentimentos em sopas e as evidências em palavras. O que, convenhamos, nem sempre é fácil.

 

Ele, desviando o olhar e a conversa, lembra que cada vez mais Portugal cheira a tragédia. E a aventura e a extravagância. Eu contraponho que é tudo isso o que nos vai arrastar para o tédio. O tédio, e a estagnação, em que se transformou a nossa cidade. O que, inevitavelmente, nos irá arrastar para a extravagância e para o desespero. Isto se não conseguirmos deitar-lhe uma mão a tempo. Ou mesmo as duas, pois a nossa cidade bem necessitada está de uma barrela.

 

Ele mostra-me uma fotografia antiga e aponta-me o seu rosto no meio do grupo. Não o reconheço. De facto, as crianças nas fotografias são iguais umas às outras. Então vestidas de escuteiros são quase impossíveis de distinguir.

 

Ali onde o veem, o R. ensinou-me muita coisa. Foi sempre um homem de bastidores. Honra lhe seja feita. Uma vez atirou-me com esta: “Já algum dia viste as traseiras de uma tribuna? Agora que tens a mania de que queres dedicar-te à política, é bom que te vás familiarizando com as traseiras das tribunas antes de seres arrebanhado pelo frenesim do pedestal. É aí onde está o poder. Quem, como eu, já viu a parte de trás de uma tribuna, com olhos de ver, claro está, fica marcado, ou melhor, fica imunizado contra todo o género de bruxedo que, de uma forma ou de outra, é celebrado em tribunas. É muito semelhante com o que se vê das traseiras de um altar de igreja, mas isso são outras histórias.

 

Está bom de ver que o meu amigo R. é um cético que abandonou o seu partido porque nunca lhe deram a atenção que ele considerava merecer. E olhem que foi um militante ativo e responsável. Claro que era um homem iminentemente de bastidores, mas, de certa forma, um fazedor de estratégias vitoriosas.

 

No início apenas dedicava ao partido as manhãs de domingo. Enquanto os outros abalavam para a missa, o R. ia para a sede fazer aquilo que tinha de ser feito: telefonar, agrafar documentos, pôr a contabilidade em dia, receber cotas, agrupar colantes, limpar o pó às fotos dos dirigentes, tornar a telefonar, substituir bandeiras, agrafar mais documentos, organizar os dossiês com recortes dos jornais, fazer ainda mais alguns telefonemas, colocar em pastas os documentos agrafados, colocar o dossiês nas respetivas prateleiras e fazer os últimos telefonemas.

 

Nos seus anos de árdua militância aprendeu a acenar sempre que os outros lhe acenavam, berrar quando os outros berravam, especialmente em desfiles e comícios, rir e bater palmas quando os outros riam e batiam palmas. E a obedecer ao dirigente (ou dirigentes), concordar com o dirigente (ou dirigentes), e nunca discordar do dirigente (ou dirigentes), mesmo que ele (ou eles) estivesse (ou estivessem) longe da vista. Pois podiam estar longe da vista mas estavam sempre perto do coração. Nisso, o seu partido contrariava a sabedoria (e um que outro anexim) popular. Era a regra que confirmava a exceção.

 

O seu partido anunciava-lhe a felicidade. A felicidade tocada a ritmo de tambor e temperada com a melopeia do hino do partido. Mas acho que foi no tema da felicidade que a sua fé no partido começou a soçobrar. Ele procurava a felicidade no partido, ou com o partido, mas quedava apenas com o sabor da sua substituição. Disseram-lhe que a felicidade também pode ser de substituição. Disseram-lhe ainda mais: que a felicidade substitui a própria felicidade. E que essa é a felicidade sedimentada. Desistiu.

 

Fomos apanhar ar e tentar agarrar um pouco de sol. Passámos na Eira (antigo Jardim das Freiras) mas lá ninguém se conseguiu sentar porque os bancos estavam a ser utilizados, e vandalizados, por jovens que com os seus skates fazem deles rampas de lançamento ou plataformas de aterragem. O repuxo continuava a lembrar-nos, como se fosse preciso, que os dias estão cada vez mais húmidos. O R. não se conteve: “Quem destruiu o jardim merecia ser julgado em praça pública. Um atentado destes merecia ser severamente punido. Isto não se faz.” Eu tentei temporizar: “Lá chegará a hora dos flavienses porem essa gente no olho da rua.”

 

Eu ainda sugeri que nos sentássemos nos bancos da rua de Santo António. Ele apenas disse: “Cruz, credo! Trânsito pelas costas? Nem pensar. Os carros são como os touros, devemos lidá-los sempre de frente.”

 

Fomos até ao Tabolado, sentámo-nos, abrimos as pernas e pusemo-nos a olhar o Tâmega enquanto o sol nos batia em cheio no corpo. Mas, mesmo assim, aquilo era mais luz que calor. Pelos vistos, até o astro rei está em crise.

 

Ficámos sentados um bom bocado. Por isso nos começámos a sentir também de madeira e com necessidade de comunicar. Todos os que ali estavam eram gente idosa, dependentes das condições atmosféricas. Sobretudo as mulheres, voltaram a ser raparigas tagarelas. E os homens também fizeram questão em lembrar as suas brincadeiras de criança, quando corriam uns atrás dos outros, quando perseguiam os casais de namorados.

 

Eu olhei para o R. e o R., olhou para mim. De súbito tivemos saudades. Uma saudade imensa da nossa velha cidade, onde aos sábados e domingos os jardins se enchiam de casais de namorados, onde nos conhecíamos uns aos outros, onde o convívio era são e pacífico, onde a vida se sentia nas ruas, nos comércios, nos cafés, nas praças, nos jardins. Actualmente a cidade ao sábado e, especialmente, ao domingo é um deserto de pedra e um cemitério de memórias. Basta olhar para os flavienses mais idosos para repararmos como choram por dentro. Ninguém passeia nos jardins, enquanto a rapaziada grita e pula em trejeitos de ameaça. Os idosos são motivo de chacota, as tradições foram dizimadas, o respeito e a educação deram lugar à indiferença e à provocação.

 

O coração da nossa cidade morreu. Dizem por aí que os flavienses a tudo se acomodam, que tudo perdoam, que tudo lhes serve. Nós sabemos que não. Por isso acreditamos que urge castigar os responsáveis pelo assassinato do coração da nossa urbe. O crime não pode compensar. 

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