O Poema Infinito (84): a memória e o lugar
A memória tem o odor inultrapassável dos alicerces de cada vida. Tem o toque da seiva lenta da árvore da juventude, o bordado meticuloso dos corpos virgens e nus, a vegetação mirabolante dos olhares, a respiração profunda do musgo dos muros, o toque frio dos tanques onde as mulheres lavavam a roupa, o grito das flores que chamavam pelas abelhas, o denso sabor da tua boca, a textura fina dos teus lábios, a luminosa água das fontes, a simplicidade interminável dos mapas que ilustravam as paredes brancas das escolas, o sabor espremido dos frutos que tanto sabiam a noite como a amanhecer. É essa dolorosa memória que me faz lembrar dos iridescentes berlindes com que jogávamos, dos tímidos jogos do botão, das rudes brincadeiras do trinca cevada, do espeto, do sábio trabalho de amassar o pão, do fogo da lareira, do mapa do tesouro escondido no rosto da minha avó, do interior da casa, do velhíssimo segredo dos castelos, do semblante marcado dos carvalhos, das manhãs cheias de neblina, das tardes inundadas de sol, das noites repletas de estrelas. Olhávamos o fogo e descobríamos os corpos dos espíritos que nos faziam companhia sentados ao nosso lado no escano. Agora o tempo atropelou tudo ao nosso redor. Por isso nos esquecemos dos objetos íntimos. Agora as palavras respiram num medo cada vez mais recente. E cada vez mais antigo. Agora viajámos sem rumo transgredindo o voo perpétuo das aves do silêncio. O ofício da memória rouba-nos a luminosidade do vagaroso olhar dos místicos. Por isso te atravesso sem me deter, tentando debelar a ruína e registar definitivamente a luz do teu olhar verde. Tento ainda perceber a exata voz das plantas, o naufrágio colorido dos astros, o rumor denso dos sonhos, o amor translúcido das montanhas, o tempo do trigo verde, a imediata paciência das paisagens, a invocação da chuva, o delírio das mãos dos amantes, a insónia das constelações, a direção dos solstícios, o consolo mortal do veneno das serpentes. O tempo ensinou-me o mágico ofício da escrita, o valor da obra, a persistência. O sol ensinou-me o caminho das pedras. Os rios ensinaram-me o regresso pelas margens. Agora conhecemos a solidão, a velocidade cruel do tempo, a indiferença crua de Deus, a inquietante sonolência dos humanos, a intensa revelação dos jardins da memória. Enquanto a madrugada cintila tudo parece continuar insensivelmente igual: a casa na sua quietude lunar, os espelhos submersos na penumbra da sua cada vez maior inutilidade, as cadeiras na sua eternidade sentada, as janelas a inventarem a sua necessidade de luz, o inverno a dilatar o frio, os corpos a ramificarem-se no seu inexorável envelhecimento. Sou cada vez mais um filho do delírio à procura do meu lugar para morrer.