Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

27
Jan12

O Homem Sem Memória - 99

João Madureira

 

99 – Tanta teimosia só podia definir um destino: o calabouço. E foi para lá que o nosso estimado herói foi enviado, com alguns dentes partidos, várias escoriações no rosto e distintos hematomas no lombo. Fora isso, a sua vontade continuava bem viva. A sua vontade, a sua atitude, o seu pensamento e a sua determinação.


Uma vez contestatário, contestatário para sempre. Honra lhe seja feita. Pois existem aqueles homens que contestam muito no início mas esmorecem logo a seguir. O José não. O José é vinho de outra pipa. O José é um herói à maneira antiga. Herói uma vez, herói para sempre. Honra lhe seja feita. Pois existem muitos heróis que são heróis mal chegam à história, mas desistem logo passadas algumas páginas porque ser herói dá muito trabalho. Especialmente ao autor. Mas que seja tudo pelas alminhas de todos os heróis que já existiram e, também, pelas alminhas de todos os outros que hão de existir daqui para o futuro.


O José continuava a viver entre almocinhos e jantarinhos fornecidos pela sua querida mãe, um que outro passeio devidamente escoltado pelos compinchas cevados com as iguarias da Dona Rosa, duas ou três cigarradas logo após o café e o bagaço, muita leitura e pouca escrita.


Podemos dizer que a situação e o cenário eram propícios a inspirar uma escrita assertiva, fogosa, denunciadora das múltiplas arbitrariedades praticadas pelo Estado Novo, acusadora da prepotência do sistema político, do poder judicial e da brutalidade do sistema repressivo levada a efeito pelas forças militares e militarizadas. Podia ainda, fruto da sua experiência, escrever sobre o evidente logro da mensagem cristã, ou, pelo menos, da aldrabice difundida pelos seus protagonistas – os tais que ocupam os altares e ensinam nos seminários –, podia descrever a decadência burguesa das supostas elites nevoenses, da sua emergente e eterna banalidade, da sua inenarrável estupidez e ignorância, podia ainda escrever sobre a sua experiência de vida entre o lumpen, sobre o seu convívio com putanheiros, putas, paneleiros, pintores, guardas e demais pimpões. Lá poder podia, mas o José era fiel à indolência e à dúvida metódica que carateriza os intelectuais.


Apesar deste caldo de cultura, deste manancial de informação, deste viveiro de saber, o José não conseguia escrever coisa que se visse. Pensava que ainda não tinha chegado o tempo certo para que as coisas lhe saíssem devidamente temperadas. A sua escrita evidenciava um desequilíbrio preocupante. Pelo menos para ele. Ou era claramente denunciadora, panfletária e repleta de azedume, ou, então, tendia para um romantismo bacoco e tão ingenuamente revolucionário que provocava enjoo e riso, qualificativos que não eram bem-vindos em tais andanças.


Por causa das vicissitudes, em vez de escrever, lia. Mas também não lia lá grande coisa. Os livros sobre marxismo, que alguns amigos lhe levavam ao calabouço disfarçados de romances de amor, davam-lhe uma soneira imensa e os que versavam sobre o leninismo, encadernados com capas de brochuras religiosas, provocavam-lhe enxaquecas terríveis. Para não esmorecer, começou a pedir à mãe que lhe levasse, às escondidas, claro está, revistas de banda desenhada e livros pequenos de cobois e romances de cordel.


Sem a mãe saber, os amigos presentearam-no, sobretudo nas noites dos fins de semana, que era a altura em que o posto estava quase deserto, com uma que outra meretriz mais atrevida. E se a comida confecionada pela mãe lhe chegava aos beiços pelo facto de ela encher o bandulho dos guardas que estavam de plantão, bem assim como o oficial de serviço, as meninas da vida apenas lhe puderam ser servidas porque atrás delas traziam o Embuçado, camuflado de tenente da GNR. Os amigos são para as ocasiões. Mesmo que essa amizade por vezes aparente uma outra coisa.


Pode até parecer mentira, mas o nosso estimado herói vivia agora uma vida dupla. Fazia que lia livros políticos, romances históricos e poesia moderna, super moderna, contemporânea ou experimentalista, para agradar aos seus amigos, que já o consideravam um resistente anti-fascista, mas o que de facto apreciava era ler BD, Sete Balas e romances cor-de-rosa.


Também recebia, a pedido da sua querida mãezinha, a visita de um padre que o confessava e lhe dava a eucaristia, e a quem dizia não pensar em mulheres, nem em nome delas se tocar. Afinal, como bem sabemos, recebia em segredo duas putas atrevidas que, a troco de algum dinheiro e de um ou outro poema erótico de baixa qualidade, que o José guardava para estas ocasiões, lhe entregavam o corpo como quem entrega a alma ao Criador.


As histórias que relatam a vida dos heróis na cadeia, heróis quase sempre vítimas da prepotência de algum sistema político ou de um tremendo erro judicial praticado por um malfeitor da pior espécie, introduzem sempre na cela do protagonista um animal. Um pequeno animal que serve para demonstrar, a quem lê ou vê um filme, que o herói é um homem de corpo inteiro, pois até o podem acusar de agitador, terrorista, assassino ou ladrão, mas quem domestica ratos, quem adota pardais, educa baratas ou ensina formigas, só pode ser um anjo. E um anjo muito, mas mesmo, muito bom, não um anjo apenas suficientemente bom, ou bom tout court.


Só que desta vez a história não se repete, ou não se repete dessa forma. Pois o calabouço do posto da GNR não tinha janeluco algum para o passarinho entrar e a mulher da limpeza desinfetava o posto com produtos tão tóxicos que eliminavam todas as formigas e baratas que tivessem o atrevimento de invadir as instalações das forças da ordem.


Mas sobra o rato, dirão os estimados leitores. Pois sobra, tenho de concordar. De facto sobra o tal ratinho que adora ser domesticado pelo herói prisioneiro, que lhe faz festinhas no pêlo branquinho, que lhe dá de comer suculentas migalhinhas de pão centeio e um que outro naco de queijinho que o citado herói, apesar de ser pouco aquele que lhe trazem, nunca se esquece de repartir com o seu ratinho companheiro de cela.


Mas nem o rato desta vez nos salva a história, nem sequer nos evidencia a coragem e a excelsa humanidade do José. Isto apesar de haver buracos na cela onde o José estava confinado. E é verdade que também havia queijinho, e do bom, e pãozinho centeio com fartura. Mas não havia rato. E não havia ratinho porque todo o quartel era patrulhado por um gato enorme que tinha tanto orgulho em ser a mascote do pessoal da GNR de Névoa que não brincava em serviço.


Podia o nosso amigo pegar no bicho, se recebesse a respetiva autorização, e pôr-se a ensiná-lo a usar botas, ou a falar. Mas nem o nosso herói é seguidista nem o autor é parvo. Ou mentiroso, sequer.


Por isso vamos ter de nos conformar com a situação. Além disso, esta também pode ser uma forma de demonstrar que um livro, apesar dos milhões que já se escreveram, pode ter uma pontinha de originalidade.


Pensarão os estimados leitores que presunção e água benta cada um toma a que quer. E estão no seu legítimo direito de assim pensar. Mas, por favor, não se esqueçam que o contrário também é verdadeiro. Apesar de o contrário ser um pensamento intrincado de definir. Mas também quem é que vos disse que a boa literatura é fácil?


Pensarão os estimados leitores novamente que presunção e água benta etc., e estão no seu legítimo direito, mas uma vez mais vos lembro que o contrário também pode ser verdadeiro. O que nos remete outra vez para o intrincado da mensagem. Por isso, fiquemo-nos por aqui. Ou aderem à tese da presunção ou ficam do meu lado. Se optarem pela segunda hipótese, agradeço-lhes desde já. Se optarem pela primeira premissa, amigos à mesma e que vos faça bom proveito. Mas lembro aos estimados leitores que se optarem pela primeira hipótese, que ela pode ser objeto da mesma argumentação pela minha parte, ou seja que presunção e água benta cada um toma a que quer. Resumindo e concluindo (já cá faltava o lugar comum), na leitura de um texto e na sua interpretação, cada um está por sua conta e risco. E é bom que assim seja. Avancemos. 

Mais sobre mim

foto do autor

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Pesquisar

blog-logo

Arquivo

    1. 2024
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2023
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2022
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2021
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2020
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2019
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2018
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2017
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2016
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2015
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2014
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2013
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2012
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2011
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2010
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2009
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2008
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2007
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2006
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D
    1. 2005
    2. J
    3. F
    4. M
    5. A
    6. M
    7. J
    8. J
    9. A
    10. S
    11. O
    12. N
    13. D

A Li(n)gar