O Homem Sem Memória - 103
103 – Durante a tarde, ele e o pai puseram-se a saltar entre os comunicados do MFA difundidos na rádio e os transmitidos na RTP. E, como eles aconselhavam, mantiveram-se calmos em casa. Nem a Dona Rosa, que era a mais arrojada da família, se atreveu a ir ao comércio da Dona Bárbara comprar o arroz de que necessitava para fazer o jantar. O povo, como muito bem dirá no futuro um patusco militar altamente graduado que chegou a primeiro-ministro, é sereno.
O guarda Ferreira fumava cigarro atrás de cigarro e bebia copo atrás de copo, enquanto escutava a rádio, via a televisão, ouvia as palavras um pouco imprecisas do seu filho mais velho e escutava os ralhetes da eterna maldisposta Dona Rosa. Mesmo o cão, as galinhas e os porcos, estranharam tanta gente em casa ao mesmo tempo e à mesma hora. Aquilo não era normal. Naquela família não. E, para piorar as coisas, as revoluções (ou melhor será dizer os golpes de Estado?) têm destas bizarrias, acontecem quando menos se espera.
Até a rapaziada mais nova teve dificuldade em atinar com as brincadeiras. Toda a gente metida em casa durante um dia inteiro colocou a família Ferreira à beira de um ataque de nervos. A televisão apenas transmitia música clássica, o que chegou a exasperar de maneira eloquente a Dona Rosa.
“Puta de música esta que me mexe cá com os nervos de uma maneira que não estou habituada. Também quem chama a isto música não pode estar bom da cabeça. Não terão por lá programas de folclore daquele senhor que fala e fuma devagar? Isso sim é que é música. A música do povo. Agora estes manjericos que se fartam de bufar em funis e arranhar as cordas daquelas violas pequerruchas, não tocam nada de jeito. Música daquela é boa para os funerais…”
Aqui o guarda Ferreira não se conteve, como era seu timbre e feitio, e retorquiu: “Então não vês que isto é mesmo um funeral. Está visto que o regime está morto. Pobre Marcelo Caetano. Ele que tanto fez pelo país vai ser destituído de forma vergonhosa e ainda por cima vão chamar-lhe todos os nomes e mais alguns. Só há uma forma do poder não cair na rua, é ser entregue ao Spínola. O distinto general é um militar prestigiado e sabe exercer a autoridade com… com…”, “Com muita autoridade” resolveu finalizar a Dona Rosa. Logo após puseram-se a olhar para os músicos tentando atinar com algo de mais substancial para dizer.
“E tu?”, perguntou a Dona Rosa ao guarda Ferreira. “E eu o quê?, tentou responder perguntando o guarda Ferreira à Dona Rosa. E ela: “Não achas que deves fazer alguma coisa?” E ele, entre o envergonhado e o surpreendido: “Fazer o quê? A GNR não se pode meter nisto. A política é para os políticos.” E ela: “Para os políticos, dizes tu. Para os políticos?, pergunto eu. Que políticos? Ao que oiço, são os militares que estão a tomar conta do poder. E tu, que eu saiba, és militar. E, como militar, também devias dar o teu contributo. O pior é ficar em casa de braços cruzados enquanto os outros se mexem e tratam da sua vida.” E ele, entre o surpreendido e o envergonhado: “Que contributo posso eu dar? Ir para a rua bater no povo que se manifesta? Ou ir ao encontro dos soldados revoltosos e disparar contra os seus tanques e os jipes? Espero que não estejas a insinuar que me devo colocar ao lado dos revoltosos. Eu sou todo do lado do Marcelo. Além disso estou a gozar os três dias de folga a que tenho direito. Eles que se amanhem. Nestes acontecimentos é sempre o povo quem deita os foguetes e apanha as canas, mas quem faz a festa e come os banquetes são os graúdos.” E ela já um pouco mais assanhada: “Continuas o bardamerdas de sempre. Só te interessa fumar e beber. És um medricas. Nestas alturas é que é preciso fazer alguma coisa. Podias tentar dar nas vistas para ver se te promoviam a cabo. E, depois, com um bocadinho de sorte e engenho, bem que podias chegar a sargento. O Vicente foi assim que conseguiu singrar na vida, meteu-se lá numas confusões e arranjou maneira de cair nas boas graças dos maiorais. Hoje é sargento e comanda o posto de Boticas. É para que vejas. Mas tu não. Tu és para aí um medricas, um pindérico que apenas se preocupa em beber e em fumar. Desenmerda-te homem. Desenmerda-te.”
“Olha, olha, lá vêm de novo as notícias!”, tentou apartar conversa o guarda Ferreira. Mas a Dona Rosa não estava para aí virada. “Não te ponhas com paleio de parvo para ver se me distrais. Eu se estivesse no teu lugar ia imediatamente para o Porto apresentar-me ao serviço e tentar fazer alguma coisa. Ficar em casa é uma cobardia. E dos cobardes não reza a história.”
“Por favor mulher, tem tento na língua. Olha os filhos!”, avisou-a o guarda Ferreira. Ao que ela retorquiu: “Muito dizes preocupar-te com os filhos, mas quem os cria sou eu. Aqui sozinha com o mirrado vencimento que me entregas todos os meses. Sou para aqui uma rodilha. Se te preocupasses realmente com o seu futuro tentavas ser alguém. Não te acomodavas com a tua miserável condição de guarda e tentavas progredir na carreira. Se tu não o fazes, outros o farão em teu lugar. Disso não tenhas a menor dúvida! Mexe-me com os nervos seres para aí um pamonha. Um homem sem ambição. E quem não tem ambição não presta para nada. Só é útil para servir os outros.”
“E que queres tu que eu faça, mulher do diabo?”, perguntou o guarda Ferreira. “Não sei. Além disso não sou eu que uso a farda”, respondeu a Dona Rosa. “Mas sempre te digo que não era pessoa para ficar em casa enquanto os meus colegas se movimentam de um lado para o outro à procura de uma maneira de saírem da confusão sem se prejudicarem.”
Mais uma vez o guarda Ferreira questionou a sua mulher: “ E se for para o Porto, que lado é que devo apoiar? O dos revoltosos ou o do Marcelo Caetano?”
“O teu”, respondeu-lhe a Dona Rosa com o sentido prático que se lhe conhece. “O teu.”