105 - Ao fim de quinze dias o Guarda Ferreira estava de armas e bagagens em Névoa e o Capitão Martins demorou apenas mais duas semanas para rumar à estimada cidade da Guarda. Mesmo pondo de lado o posicionamento social, as receções foram muito distintas. Ao capitão todos lhe dedicaram ternos sorrisos e efusivos abraços. Já ao guarda Ferreira nem o cão revelou qualquer espécie de entusiasmo.
A Dona Rosa, mal o viu entrar portas adentro, começou logo a arengar: “Ai que susto. O que fazes aqui? Já te deram folga? Cansaste-te da revolução?” Ao que ele respondeu: “Vim de vez.” E ela, entre a estupefação e a incredulidade: “Como de vez?” E ele surpreendido por tanta frieza e tanta dúvida: “De vez. Vim de vez. Já não torno. Vim transferido para o posto de Névoa.” A Dona Rosa ainda com uma réstia de esperança difusa na voz: “Promoveram-te?” O guarda Ferreira surpreendido: “Não, não me promoveram. Transferiram-me para aqui. Para junto da minha família. Não era o que tu querias?” E ela agressiva como uma cadela: “O que queria era que te pusessem umas divisas em cima dos ombros.” E ele acabrunhado: “Era uma coisa ou outra. Escolhi esta. A outra era uma incerteza. Além disso podiam matar-me. É que os tempos não estão para brincadeiras.” Depois fez-se silêncio. O guarda Ferreira limitou-se a olhar para a mulher talvez com a esperança de um pequeno carinho. Mas a Dona Rosa limitou-se a continuar concentrada a engomar a roupa enquanto o cão dormia junto a uma perna da tábua de passar.
“Então, já que estás aqui, pega no caldeiro e vai dar de comer aos recos. Que é para o que serves”, disse a Dona Rosa com a delicadeza que todos lhe reconhecemos. Não contente com o dichote, pregou um pontapé no cão e mandou-o dar uma volta. Ambos e dois obedeceram sem manifestar a mais pequena discordância.
“Os porcos já estão acomodados. O que queres que faça a seguir?”, perguntou nervoso o guarda Ferreira. “Olha, acorda o teu filho mais velho que agora só sabe dormir”, disse colérica a Dona Rosa. Depois ficou de novo em silêncio. Após algum tempo de espera, resmungou sem tirar os olhos da roupa que passava: “O mundo às avessas e os meus homens enfiados dentro de casa como mulheres. Não sei que raio de sangue vos corre nas veias. Do meu não é com toda a certeza.”
O José, assomando à porta do quarto, rabujou: “Já não se pode dormir descansado nesta casa. É preferível estar preso, pelo menos lá não nos incomodam com discussões familiares. A família, essa infernal instituição burguesa, é para o que serve, para dar arrelias, preocupações e para nos manietar de pés e mãos às convenções, ao conservadorismo e à hipocrisia.”
“Cala a boca e vai lavar a cara e pentear-te. Pareces um cigano”, ordenou-lhe o pai. E o José tentando ganhar espaço e tempo: “Então o pai está por cá de novo? Foi rápida a estadia no Porto. Os revolucionários depressa desmobilizaram. O que fez de tão importante para o promoverem num ápice?”
Mas em vez de ser o guarda Ferreira a responder, quem o fez foi a sua querida e estimada esposa: “Não foi promovido. Foi transferido de posto. O teu pai não possui a mais pequena réstia de ambição. Contenta-se em ser o borra-botas que sempre foi e há de continuar a ser. Desde que tenha dinheiro para o cigarro e para o copo, já se dá por contente. E eu que me amanhe.”
Enquanto o José fazia que lavava a cara e se penteava, o pai tentou pôr-se teso e contestar os argumentos da mãe: “Todo o dinheiro que entra nesta casa sou eu que o ganho…” “Todo não”, contrapôs a Dona Rosa. “Eu também ganho algum com as camisolas que faço e com os panos de renda e bordados. Se vivêssemos apenas com a miséria que trazes para casa morríamos à fome. E quem é que cria os porcos, as galinhas e os coelhos? Quem? E quem é que vai à lenha? E quem é que sacha as batatas e rega a horta? Quem? E quem é que…”
“Cala-te mulher. És uma ingrata. Quem te ouvir até pode pensar que é verdade aquilo que dizes. Se não fosse o meu ordenado é que morríamos à fome. És uma ingrata. Para ti nunca nada está bem. Aos teus olhos sou para aqui um verbo-de-encher”, indignou-se o guarda Ferreira.
“Lá verbo podes ser, agora de encher é que não. Para encher estou cá eu”, disse a Dona Rosa. E o guarda Ferreira: “Não te faças de engraçada comigo.” E o José: “A mãe, quando quer, até é engraçada. Mas gosta, sobretudo, de fazer o papel de desgraçada. Está-lhe no sangue. Se abraçasse o teatro dava, com toda a certeza, uma excelente atora dramática.”
A Dona Rosa levada do diabo: “Cala lá o focinho, mas é. Quem é que te julgas para fazeres de engraçadinho comigo. Pensas que estás a falar com alguma tua amiga galdéria? Tu sais ao teu pai. És também para aí um bardamerdas. Podias vir a ser alguém, um grande homem da Igreja, um bispo bem arreado e bem cevado, e respeitado, mas não passas de um putanheiro sem eira nem beira. Um pobre como tu não se pode dar ao luxo da boémia. Isso é para os filhos dos ricos. Os filhos dos pobres, para singrarem na vida, ou estudam ou fodem-se.
“Mãe!”, exclamou o José. “Mulher!”, exclamou o guarda Ferreira. “Ão, aõ, ão! exclamou o cão que se tinha vindo colocar junto aos pés da dona.
E a Dona Rosa começando a chorar baba e ranho: “Deixai-me em paz. Sou para aqui uma desgraçada. Ninguém me compreende, ninguém me ajuda. Ninguém segue os meus conselhos. Só me apetece ir para o monte e gritar, gritar até não poder mais. Gritar até rebentar. Se não fosse por causa dos mais pequenos matava-me com o veneno dos escaravelhos.”
“Mulher!”, exclamou de novo o guarda Ferreira. “Mãe!”, exclamou segunda vez o José. “Ão, aõ, ão!” exclamou abanando a cauda o cão. Como não podia fazer mais nada que não pudesse acabar em tragédia, novamente deu um pontapé no cão e enxotou-o para a rua.
Passado apenas o curto tempo de o guarda Ferreira fumar um dos seus cigarros sem filtro, deram entrada na casa os Ferreiras mais pequenos vindos da escola, seguidos pelo cão que não se cansava de ladrar e abanar o rabo. “Olha, é o pai”, disse um deles como se tivesse visto um fantasma. E o pai: “Então meus queridos filhos, estais bons?” E os filhos: “Estamos cheios de fome. Queremos comer.” E a mãe, fazendo-se chocada: “Então não dais um beijo ao vosso pai?” E o José, fazendo-se surpreendido: “Então não dais um beijo ao pai?” E os filhos indiferentes: “Dê-lhos a mãe. Temos fome. Queremos comer.” E a mãe pondo a mesa: “O vosso pai vem para cá de vez.” “Ó que chatice!”, disse o mais velho dos pequenos. “Ó que chatice!”, disse o do meio. “Ó que chatice!”, disse o mais novo, que também era o mais atrevido. E desabafou: “Ele é tão chato. E cheira mal da boca.” E o que ainda não tinha dito nada disse alguma coisa: “Com ele cá a casa ainda vai ficar mais pequena. Quando ele se deita com a mãe, o João e o Luís vão dormir no nosso quarto e ficamos todos tão apertados que até suamos.” Pausa: “Ó mãe, o pai não pode ir embora outra vez?”
Ao guarda Ferreira nem a comida se lhe engoliu. Tamanha receção deixou-o prostrado. Ele sabia que os anos passados longe de casa tinham cavado um fosso enorme entre si e os filhos, especialmente em relação aos mais novos, que não o viam como um pai, mas sim como um intruso, que por vezes ficava lá em casa dois ou três dias mas que se ia embora antes de começar a aborrecer. Mas não podia imaginar que o apontassem como um empecilho, como um estorvo, como um estranho que não fazia parte das suas vidas.
Não se sentido querido perseverou ainda mais no vinho e no cigarro. Só ia para casa já noite dentro, levantava-se com as galinhas e ia para o posto. Nos dias de folga, com o pretexto de ir amanhar as terras que tinha na Torre, rumava para a aldeia fazer que fazia.
Também o José principiou a sentir-se mal com a situação. A vadiagem não podia ser eterna.
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