O Homem Sem Memória - 107
107 – O José bem procurou por toda a cidade democratas-cristãos, mas não encontrou nenhum. Nem sequer o primeiro para amostra. Era o que dava, por muito incrível que isso possa parecer aos estimados leitores, estar um pouco à frente do seu tempo. Porque, bem vistas as coisas, todos somos essencialmente democratas-cristãos
Os comunistas são democratas-cristãos e os socialistas também são democratas-cristãos. Até os democratas-cristãos são democratas-cristãos, por incrível que isso possa de novo parecer aos estimados leitores, pois alguém conseguir ser aquilo que diz ser é muito difícil. Apesar de há primeira vista parecer o contrário.
Lembremo-nos ainda que a doutrina social da Igreja tem muito de comunista e algo de socialista. Dizem por aí que Cristo foi mesmo o primeiro comunista. E o mais original. O mais divino. O mais simples. E quem somos nós para desmentir tal afirmação? Mas também quem somos nós para a confirmar?
Por isso é que o Papa João XXIII tentou unir aquilo que Deus desuniu. Não o alcançou, temos de convir. Para isso necessitava de ser Deus e não apenas o seu máximo representante na Terra. É que uma coisa é ser Deus e outra bem distinta é ser um seu representante, por muito Papa que se seja. Mas ainda deu um arzinho da sua graça. A cristandade tem destes paradoxos e destas peculiaridades, mas para isso mesmo é que é cristandade. Senão era outra coisa qualquer e perdia toda a graça e até o sentido de ser. Pois, como muito bem escreveu Shakespeare (o símbolo máximo do cânone ocidental, segundo o canónico Harold Bloom, esse D. Quixote da crítica literária. Ou será antes Sancho Pança?): “Ser ou não ser, eis a questão.” Ou ainda melhor e vertido em inglês de lei: Be or not to be, is the question.
O José, porém, não desistiu logo à primeira tentativa de encontrar um democrata-cristão, mesmo que dos fraquinhos. Mas perseverou.
Encontrou democratas que não eram cristãos. Ou pelos menos cristãos praticantes. Encontrou cristãos que não eram democratas. Pelo menos democratas praticantes. Descobriu democratas que, bem vistas as coisas, não eram democratas nem cristãos, que, também bem vistas as coisas, não eram cristãos verdadeiros nem democratas tout court.
Deparou-se igualmente com pessoas que se afirmavam socialistas e cristãs, já que, na sua ideia, o ser democrata se encontrava implícito na denominação de “socialista”. Encontrou comunistas que se diziam democratas, apesar de o não serem, e que, um pouco envergonhados até, se confessavam cristãos, apesar de aí existir uma terrível contradição entre o materialismo científico do catecismo marxista e a religião, que era o ópio do povo, como muito bem tinha afirmado Marx, o Papa de todos os comunistas e de alguns socialistas mais ardentes.
Mas democrata-cristão a tempo inteiro não encontrou nenhum. Nem um para amostra. Névoa também nisso seguia a moda nacional: A democracia de novo tipo que se estava a construir para levar o país rumo ao socialismo não se podia dar ao luxo de criar democratas-cristãos e liberais só porque eles não existiam em Portugal. Uma democracia não cria partidos. Os partidos é que são os responsáveis pela criação da democracia. Pelo menos é isso o que dizem os entendidos na matéria.
Verdade seja dita, o José também não encontrou nenhum fascista. Muitos dos que assim eram identificados pelos militantes da esquerda juravam a pés juntos que sempre tinham sido democratas e que só não o afirmaram publicamente porque Salazar, Caetano e os agentes da PIDE eram homens para os enfiarem na cadeia e dar-lhes porrada de criar bicho. Lá no fundo até podiam ser democratas, mas não eram idiotas ao ponto de o dizerem abertamente. Mas lá no fundo eram democratas. Sim. Eram democratas. Não tinham é a coragem suicida de o afirmarem publicamente. Mas eram democratas. Lá no fundo. Sim.
Apesar de ninguém o ler e nem sequer servir para fazer as palavras cruzadas, pois não as tinha, nem para ser utilizado como instrumento de auxílio à higiene pessoal, por causa do papel demasiado acetinado e da tinta que custava a secar, o periódico mais vendido na cidade passou a ser A Verdade, a voz da classe operária, o jornal dos comunistas. E quando algum dos que se intitulavam democratas, ou cristãos, se negavam a comprar o órgão da classe operária, eram insultados aos berros de “fascistas, reacionários e agentes da CIA”.
Triste e desiludido, o filho do guarda Ferreira e da Dona Rosa desaguou numa casa de pasto e, com os olhos no subtítulo Da Verdade “De pé ó vítimas da fome”, pôs-se a comer um rancho bem temperado e a beber uma garrafa de tinto da região. Estava ele na segunda pratada, no terceiro copo, e ainda na primeira frase do editorial de A Verdade, quando viu entrar na taberna o Graça que se colocou a seu lado e lhe contou o que a seguir vos vamos contar. É que a história da revolução democrática e nacional também se fez com tamanhos gestos de luta e solidariedade.
Disse-lhe que os seus amigos, no dia a seguir ao 25 de Abril, tinham decidido ir exigir a sua libertação dos calabouços da GNR. Para o efeito organizaram uma manifestação que contou com doze intrépidos antifascistas munidos de duas bandeiras e um cartaz e meio, onde se exigia aos antigos protetores da ditadura que libertassem imediatamente o camarada preso político que dava pelo nome de José não sei quantos Ferreira. De lá de dentro veio um guarda que os informou que naquele momento na cela do posto apenas se encontrava o Saraiva, bêbado como um carro apesar de ter sido preso às cinco da manhã e de àquela hora já passar das três da tarde.
Mas os intrépidos antifascistas não estavam na disposição de se deixarem enganar e ameaçaram que se não lhes fosse entregue o camarada José não sei quantos Ferreira ainda antes do anoitecer, se viam na obrigação democrática e revolucionária de invadir as instalações da GNR e de o restituir à liberdade, mesmo que para o efeito tivessem que recorrer à força.
O agente que nessa altura se encontrava de plantão no posto, avisou-os de que tinha sido informado, via telefone, pela esposa do tenente Sampaio, pois o comandante de posto estava de cama em casa com uma crise de hemorroides, espondilose, urticária, ácido úrico e lombalgia, que ou dispersava voluntariamente a manifestação ou os agentes da autoridade tinham de tomar as devidas providências para desimpedir a praça e restabelecer a ordem pública.
Durante mais de uma hora, o pobre do GNR não se cansou de informar os intrépidos antifascistas de que o preso político, conhecido como José qualquer coisa Ferreira, tinha sido libertado ainda antes do golpe militar que pôs o Spínola no poder e o Marcelo Caetano na rua, sem contrapartidas.
Vendo que o GNR não saía da sua teimosia, os intrépidos antifascistas puseram-se a berrar ainda mais alto que o povo unido jamais será vencido e que o povo está com o MFA e que por isso exigiam a libertação do camarada José qualquer coisa Ferreira, sem condições ou qualquer tipo de contrapartida.
Lá pelas quatro e meia da tarde, a manifestação viu-se rodeada por uma multidão de pessoas que ali paravam para assistir ao desenrolar dos acontecimentos. Não se manifestavam, apenas observavam a dúzia de intrépidos antifascistas a berrar e o guarda de plantão ao posto da GNR a tentar demovê-los de assaltarem o quartel, pois isso não era permitido por lei, e muito menos pelo senso comum, e seria uma ação inglória, pois o preso político tinha sido libertado ainda antes do golpe de estado do Otelo.
Mais para o fim da tarde, as donas de casa, as empregadas de servir e as meninas donzelas, abriram as janelas das suas casas e puseram-se a observar as pessoas da praça que rodeavam os intrépidos manifestantes antifascistas que montavam a vigília ao posto da GNR de Névoa com a firme determinação de conseguirem libertar o preso político seu camarada.
Dentro do posto, os poucos guardas que lá se encontravam começaram a sentir-se nervosos e a especularem sobre a melhor forma de pôr cobro a tal situação. Se carregassem sobre os manifestantes, era bem possível que os dispersassem, pois eles eram poucos e quase todos ganapos que não podiam com um gato pelo rabo. Mas a sua preocupação residia na populaça que se encontrava ao redor da manifestação, pois se carregassem ou disparassem sobre a dúzia de manifestantes, o povo podia enfurecer-se e matá-los apenas com a impetuosidade dos seus pés e a raiva das suas mãos.
Foi então quando o sargento da GNR, num gesto altruísta e desassombrado, resolveu pegar no Saraiva ao colo, subir as escadas, chegar à portão e mostrar ao povo o bêbado, avisando-o que aquele era o único individuo que estava preso.
Quando a dúzia de intrépidos militantes antifascistas viram o sargento com um corpo desfalecido ao colo, começaram a gritar “é ele, é ele” e a comentar que a GNR tinha morto o preso político. Depois gritaram “assassinos, assassinos” e tentaram romper caras ao sargento. Nesse momento o militar graduado deixou cair o corpo e, como por milagre divino, de repente o putativo féretro ganhou vida. O Saraiva começou a correr espavorido em direção à praça como se levasse fogo no rabo.
Desiludidos, os doze arrojados antifascistas, desmobilizaram por entre os risos do povo e a arrelia do Saraiva que se viu de repente no meio da multidão que começou a saudá-lo como um herói e a cantar a canção em voga na altura: Saraiva amigo o povo está contigo e o Saraiva está com o MFA. Ao que o Saraiva retorquiu: “Se sois o povo e o povo está comigo, pagai-me mas é um copo que estou cheio de sede.”