O Poema Infinito (93): a infinita história
A antiga luz das histórias doces torna-se amarga e os homens beijam as mulheres com toda a cegueira do desejo e o desejo fica preso nos lábios e nas mãos e nos sexos dos amantes e os amantes ficam presos nas estrelas inscritas no céu dos seus olhos e os seus olhos transformam-se em sóis amadurecidos abalados pelo vento que já separou as águas do Nilo que nesse dia se tornaram vermelhas de morte para os afogados. E o céu retirou-se para dentro do meu livro de poemas momentos antes de eu adormecer. O vento move-se do seu lugar espreitando o limbo das águas e da neve e da geada que ilustram mais uma fábula de moral altruísta. Agora amadurecem os sons das guerras antigas que faziam cair os homens e chorar as mulheres e ainda sufocar as crianças por não conseguirem fechar a boca por causa do espanto da morte e da maldade e da estupidez. E os homens e as mulheres caíam cegos por causa do amor e do ódio que se misturavam com o suor e com o sangue das batalhas. Homens iguais uns aos outros matavam-se por que se julgavam diferentes. E havia homens brancos e homens pretos mortos lado a lado ilustrados com a cor ultravioleta da dissolução e que eram chorados pelas suas mulheres e incompreendidos pelas crianças que abriam ainda mais a boca com o espanto da guerra, da maldade e da estupidez. E os anjos da discórdia beijavam as lanças e as espadas e as flechas e os elmos e as cruzes de cristo e os crescentes árabes inscritos em tatuagens horrorosamente belas. E o firmamento enchia-se de uma água de lembrança apocalíptica e o deus de todos e de cada um abria as páginas do esquecimento e punha-se a escrever no livro que lhe ficava preso na boca de fogo e luz e era com ele que incitava os seus crentes à glória da morte triunfal. E o livro enrolava-se na língua dos guerreiros e na língua das mulheres e na língua das crianças e crescia como se fosse uma doença divina. E depois os anjos da guerra, cheios de sangue e vingança, subiam aos céus para de seguida tombarem na terra em forma de tempestade violentamente branca. Deus não se mexia do seu lugar e continuava a escrever no seu livro que despertava amor, morte e vingança e os homens que ressuscitava tornavam a matar e a morrer como se nada tivessem aprendido com a sua morte anterior. E deus continuava a escrever e os anjos a inchar de sangue e a subirem aos céus e descerem em forma de relâmpagos de vingança. E os homens continuavam a lutar e a matar e a morrer e as mulheres continuavam a chorar e a amar e a parir e as crianças continuavam a abrir ainda mais a boca e a sufocar de incredulidade como se todo o firmamento fosse uma vingança feroz de um deus que escreve um livro que lhe fica preso na boca e com ele manda matar e morrer em seu nome e em nome dos seus. E fez-se noite e os mortos amadureceram. E fez-se dia e os vivos, saindo das trevas da noite, olharam para o seu deus de livro na boca e continuaram a lutar, a lutar ferozmente, como se fosse esta a primeira vez, e as mulheres continuaram a chorar e as crianças continuaram a abrir ainda mais a boca por não conseguirem compreender a mesma história que lhe continuaram a contar. E até deus se deslumbrou com esta história que é sempre a mesma e que ninguém consegue entender. Nem ele que é sábio e por isso a escreve eternamente e de igual maneira.