O Homem Sem Memória - 108
108 – Arreliado, muito arreliado, desiludido, muito desiludido, e ofendido, muito ofendido, o José foi desaguar a casa do Fernando onde reinava a mais terna e mais alegre das anarquias.
O Fernando, quando o viu entrar, admirou-se, pois já há largas semanas que não passava lá por casa. “Então herói antifascista, o que te traz por cá?”, disse para meter algum humor na conversa. Mas o José não lhe deu troco. No entanto, para se armar, propôs: “Desafio-te para jogarmos uma partida de xadrez.” “Xadrez a esta hora do dia, com a revolução na rua e a liberdade a passar por aqui, estás mas é doido. Doido varrido!”, contrapôs o Fernando que não gostava mesmo nada de jogar xadrez durante o dia e detestava ainda mais ter como adversário um amigo que não dava luta nenhuma.
O José insistiu: “Vá lá, só uma partida para eu pôr as minhas ideias em ordem.” O Fernando em pose de conselheiro: “Esse é o teu grande problema: quando jogas xadrez pensas noutras coisas e quando pensas noutras coisas limitas-te a jogar xadrez mental. Olha que as pessoas não são peças de xadrez. Não se jogam, não se movem num tabuleiro por nosso capricho. E se o caprichoso não souber movimentá-las convenientemente ainda é pior. Além disso, convém separar as águas: uma coisa é jogar um jogo, outra bem diferente é jogar com a vida, com as oportunidades, com as expectativas das pessoas, com os seus sentimentos, com os seus valores. A vida não é um jogo…”
“Nisso é que te enganas. A vida é um jogo. E a cada um toca jogar de acordo com a vontade do Mestre. Quando tu mexes uma pedra no tabuleiro não foste tu que a mudaste, foi alguém por ti, tu limitaste-te a movimentar a peça, mas quem pensou a jogada foi o Mestre”, retorquiu o José armado em filósofo do xadrez.
Mas o Fernando não se deixou levar pelo paleio: “Se quando tu jogas é o tal Mestre que te informa, então tens que mudar de Mestre pois o teu pode saber tudo mas, com toda a certeza, jogar xadrez é que não.”
E o José armado em democrata-cristão, ou mesmo em cristão puro e duro, coisa de que o Fernando desconfiou logo e nós, que o conhecemos um pouco melhor, também torcemos o nariz: “Tu sabes lá se o meu Mestre não é igualmente o teu Mestre, só que, como não pode ganhar dos dois lados do tabuleiro, por ser humanamente incompreensível, e empatar não serve a ninguém, opta por deixar-te ganhar para não acreditares nele, para eu poder acreditar.”
“Mas o que tu acabas de dizer é uma rematada idiotice. E tu não és idiota. Podes fazer-te de idiota, podes falar como um idiota, podes até comportar-te como um idiota, mas tu, mesmo que queiras, não és um idiota. Aí nem o teu Mestre te pode enganar. E se existir o tal Mestre, é bem provável que não seja idiota. Ou o seja apenas quando te comanda a mão quando jogas xadrez comigo”, disse desassombradamente o Fernando.
Mas o José tornou à teima, pois podia ser mau jogador de xadrez mas não era rapaz para se deixar vencer numa disputa dialética. As aulas de Retórica no seminário para alguma coisa tinham servido. E, como todos os que somos crentes sabemos, tudo o que não mata, salva. Por isso teimou forte e logo com um lugar-comum, que não tem compreensão humana nem resposta racional: “São insondáveis os caminhos do Senhor.”
“Tu andaste a meter-te na pinga?”, questionou-o o Fernando já a ficar um pouco admirado com tanta embirração filosófica e metafisica. “Não. Ando a tentar meter-me na política”, desabafou o José. E o Fernando: “Então não escolheste já o teu trilho? A prisão não te iluminou o caminho? A repressão não te abriu os olhos?”
Ao que o José respondeu: “Na prisão jogava xadrez contra mim próprio e nem mesmo assim conseguia ganhar.” E o Fernando, um bocadinho para o irónico: “Lembra-te que era o teu Mestre que estava do outro lado do tabuleiro. Quando veste a tua pele vê-se na obrigação de mexer as pedras para perderes. Quando se põe do outro lado só sabe ganhar. Por isso é que perdes sempre. Ele faz-te perder ao xadrez para te ganhar a alma. O xadrez é apenas o seu caminho. Tu disseste ainda há pouco que são insondáveis os caminhos do Senhor. Depois de pensar um pouco no assunto, acho que começo a entender-te a ti, ao teu Mestre, ou Senhor, e até os seus caminhos. Fazer-te perder ao xadrez comigo, e até contigo mesmo, é um caminho de redenção tão subtil, mas tão subtil, que só o teu Mestre é que é capaz de tal façanha sem que o comum dos mortais se possa aperceber do absurdo da situação.”
“Quanto mais te ouço mais me convenço de que o meu argumento é verdadeiro. Tu estás a esclarecer-me várias coisas para as quais não tinha arranjado justificação. Tu és um ungido”, disse o José meio a sério meio a brincar. “Mas eu nem sequer sou batizado”, respondeu o Fernando. “Mas ainda vais muito a tempo”, avisou-o o José.
“Ó José, estou em crer que não vieste cá a casa para jogares xadrez comigo ou, sequer, para me falares do teu Mestre. Sabes bem que eu nessas merdas não alinho. Eu não me meto com o teu Deus, mas também peço que não vos metais comigo”, disse o Fernando já a ficar muito para o sério.
“Da maneira como falas, tens de admitir que te referes a Ele como uma realidade, ou, pelo menos, como uma forte possibilidade”, afirmou o José.
O Fernando tentando não perder os papéis: “Olha José, vamos esticar o teu argumento um pouco mais. Quando jogo xadrez com o meu pai, umas vezes perco eu, outras perde ele. Quando assim acontece, de que lado é que o teu Mestre se senta?”
E o José num raciocínio que deve tudo à coragem, à sapiência, à capacidade de especulação, numa palavra sagrada, à genialidade: “O meu Mestre não se mete em jogos de xadrez de ateus. Nessas ocasiões tanto lhe faz que ganhe um como outro. De ateus não passam. Nem Ele os quer para outra coisa que não seja para o negarem. Foi para isso que se deu ao trabalho de vos criar. E um ateu dos bons custa mais a conceber do que para aí uns cem crentes. Dá um trabalho do catano. De facto Ele só pode provar que existe se alguém o negar. A não ser assim ninguém lhe ligava importância. Tu existes para o negar, que é o mesmo que afirmar que foste por Ele criado para fazeres o papel que fazes, o de ateu que o nega para o preservar, para o lembrar, para lhe dar sentido. Se tu não o negasses, Ele não tinha necessidade de provar que existe e por isso não existia mesmo.”
Cansados com a pertinência da discussão, aceitaram de bom grado umas sandes que a mãe do Fernando lhes arranjou, regaram-nas com dois copos de tinto cada um e puseram-se a ouvir Zeca Afonso no gira-discos.
“Faz-se noite. Terna é a noite. Esta noite do riso e do esquecimento. Não queres jogar uma partida de xadrez comigo?”
“Ah, ah, ah”, riu-se o Fernando. “Ah, ah, ah”, riu-se o José. “Ah, ah, ah”, riu-se a mãe do Fernando por os ver gargalhar com tanta vontade. “Ah, ah, ah”, riu-se o seu irmão Abel que se ria por tudo e por nada. “Ah, ah, ah”, riu-se nas escadas o senhor Carvalho que gostava de ver as outras pessoas rir e por isso ria com elas, fosse por que motivo fosse.