O Poema Infinito (100): a habitação
Tenho a sensação aflitiva de que estou a ficar cego por olhar o mundo com olhos de ver. E que estou a ficar mudo por nomear as palavras e as coisas como se o que é belo definhasse por escrevê-las imobilizadas pela luz amarela do candeeiro. Por isso continuo a desejar aquilo que nunca verei e os corpos cintilantes das mulheres sereias que sorriem por dentro do seu suicídio feminino de água e nudez. Ponho as mãos em cima das pedras da casa velha e sinto que a minha memória humedece de medo. E a janela chama-me. Dela avisto o rio que corre como sempre correu, insensível à vida e à morte. Deito-me novamente e deposito-me nos sonhos. Dentro e fora da casa os mortos e as suas sombras de saudade e adeus esburacam a madeira e a terra perturbados pelo tempo infinito do adeus e da eternidade. Lá fora, as sombras das casas desabitadas enferrujam dentro do seu pó de aranhas e silvas. Aqui já nada me pertence. Nem o medo. Nem a morte. Nem a vida. Resta-me apenas o pouco tempo que aqui vivi e que me enche a memória de lágrimas e de medos e de arrependimentos e de desejos estúpidos. Ali naquela varanda secava-se a roupa, o milho e as passas das pavias. Também corria uma brisa fresca nas quentes tardes de verão. No inverno, enquanto na cozinha o lume aconchegava os potes durante todo o dia e a comida cozia e cozia e cozia, eu, sob o olhar atento da minha avó, dormia sonhando que brincava com a neve que se acumulava lá fora. Sem querer, a noite vinha e tornava-se densa, fria e silenciosa. O frio é silêncio nas casas e nas terras dos pobres. Quando acordada ficava em silêncio deixando que os fios dourados dos meus pensamentos penetrassem na misteriosa magia do crepitar da lenha. Apesar de pensar o contrário, as noites e os dias eram tristes. A minha avó era triste. Eu era triste. Eu ainda sou triste, de uma tristeza séria e descarada. Por vezes ladravam os cães. Também os cães eram tristes. Outras vezes não ladravam. Por vezes ouviam-se os passos dos homens. Também os homens eram tristes. Outras vezes ouviam-se os gemidos dos outros animais e escutava-se a melancolia fria e engelhada das mulheres que cresciam tão cedo como a aurora e envelheciam tão rápido como os dias de inverno. Também as mulheres e os outros animais eram tristes, até mais tristes que os homens e os cães. Agora as ruas estão desertas e apenas alguns cães vadios fazem que passeiam e ladram. Já nem os cães sabem ladrar como antigamente. Agora já não é possível o regresso. Já não são possíveis os sorrisos. Até a própria memória se está a transformar numa inutilidade escrita. E o silêncio lamina o dia e a noite e o amanhecer. A casa começa a quebrar-se por dentro projetando filamentos de eterno e irremediável abandono. E o abandono expande-se em ondas de tempo devassando tudo o que tinha vida e era útil. Doem-me agora os rostos dos meus familiares mortos. São como espelhos vazios. São como raízes de ervas. Alguns pássaros dançam no céu para provar a beleza efémera da vida. Libélulas esquisitas zumbem de encontro aos vidros. Os rostos transformam-se agora em alucinações. As alucinações transformam-se em corações vegetais. Que habitação é esta?