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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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25
Mai12

O Homem Sem Memória - 116

João Madureira

 

116 – E presumivelmente melancólico avançou para o Novo Testamento. Mas passemos, com a vossa permissão, a mais algumas anotações. Estas feitas em papel branco e escritas à máquina.


Logo a abrir, o Evangelho de S. Mateus fala da genealogia de Jesus Cristo. É o romance mais pequeno e mais impetuoso de sempre, cheio de personagens que se sucedem a um ritmo frenético.


E lá está Abraão que gerou Isaac que gerou Jacob que gerou Judas que gerou Farés que gerou Esrom e assim sucessivamente até a Jessé que gerou o rei David que gerou Salomão e por aí fora numa sucessão arrebatadora de sequências ininterruptas, sempre no masculino, como se fossem os homens que parissem, até chegarmos a Jacob que gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama Cristo.


Na parte relativa ao nascimento de Jesus é contada a famosa e enigmática história de que Maria engravidou sem se ter antes ajuntado com José, o seu legítimo e carnal esposo.


Passo a citar: “ Então José, seu marido, como era justo e não queria infamar, intentou deixá-la secretamente. E projetando ele isto, eis que em sonho lhe apareceu um anjo do Senhor, dizendo: José, filho de David, não temas receber Maria, tua mulher, porque o que nela está gerado é do Espírito Santo. E dará à luz um filho, e chamarás o seu nome Jesus; porque ele salvará o seu povo dos seus pecados.


Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que foi dito da parte do Senhor, pelo Profeta, que diz: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e chamá-lo-ão pelo nome de Emanuel, que traduzido é: Deus connosco. E José despertando do sonho, fez como o anjo do Senhor lhe ordenara, e recebeu sua mulher; e não a conheceu até que deu à luz o seu filho, o primogénito; e pôs-lhe por nome Jesus.”


Bem, esta segunda parte da história é, no mínimo, rocambolesca. Maria já estava grávida no momento do casamento. E isto é uma maldade divina. Ou seja, o Espírito Santo, que é uma figura estranha, soturna e enigmática, gerou Jesus sem dizer nada a Maria nem a José. Não disse nada a ninguém. Escolheu, decidiu e fez. Posteriormente confrontou-os com o putativo pai com o facto consumado. Podia ter discutido com José e tentar convencê-lo, pois não estou a ver José com tomates suficientes para contrariar Deus, mesmo que o pensasse. Tarefa mais árdua seria persuadir um ateu.


José, porque descendia de reis tementes a Deus, porque era obediente, porque tinha postura de estadista e uma mulher grávida pelo seu Deus, aceitou a fatalidade e soube-a aguentar em silêncio. Não sabemos se era humilde ou simplesmente parvo.


Em nome do seu povo, e da salvação do mundo, José não devia de ter dúvidas. Além disso, José era um homem que acreditava nos sonhos e que sonhava com coisas esquisitas. Não se percebe muito bem por que é o anjo quem aparece nos sonhos de José e não o próprio Espírito Santo, que não sabemos se é mesmo Deus, um seu disfarce ou um heterónimo.


Do que não há dúvida nenhuma é que José era mesmo um cavalheiro, pois mesmo antes de fazer juízos de valor, já tinha decidido deixar Maria sem dizer nada a ninguém.


No entanto registo uma incongruência textual que é a passagem onde se afirma que José é filho de David, quando um pouco antes Mateus, ou alguém por ele, escreveu que o pai de José era Jacob. José era descendente de David, não seu filho. Outra evidência é que o nome profetizado para Jesus era Emanuel, que traduzido, não sabemos de que língua, nem por que razão, queria dizer que Deus estava connosco.


Desfeito o imbróglio, ou confessado o pecado original da gestação de Jesus, por parte de Deus, sob o disfarce de Espírito Santo, José despertou e recebeu Maria, mas não se atreveu a tocar-lhe até ela dar à luz o seu filho. Curioso é o facto de a partir de José, a sucessão passar dos homens para as mulheres, sem razão aparente. Qual terá sido a razão para a mudança radical de paradigma? São insondáveis as escrituras do Senhor. Ou seja, Jesus veio interromper a cadeia genealógica de Abraão para se dedicar a fazer milagres e a iludir a humanidade com a mais que duvidosa promessa de eternidade. Manias.


Está visto que Mateus, tal como José, era o rei dos crédulos, ou, então, um excelente contador de histórias para o lar e para as crianças. É que logo a seguir fala dos magos do oriente, da fuga para o Egito e da matança dos inocentes, da volta do Egito, de João Batista, do batismo de Jesus, da sua tentação pelo Diabo e outras histórias pelo estilo.


O Evangelho de Mateus assemelha-se muito com a tradição árabe do conto de histórias mágicas e terroríficas. De certa maneira Jesus é descrito por Mateus como um mágico e um curandeiro que pelo meio das suas andanças vai dando conselhos, filtrando moral, quase como um lunático cuja missão é curar pessoas e protagonizar feitos que mais parecem guiões de banda desenhada.


Mateus chega mesmo a pôr Jesus a caminhar por cima das águas do mar como um vulgar herói de uma história para jovens.


Vê-se que Mateus fez de Cristo um homem de parábolas, muitas delas interessantes, mas muitas outras disparatadas. Também se torna evidente que Jesus era perito em dar sermões por dá cá aquela palha. Quando alguém o arreliava lá vinha o ungido com mais uma prédica.


Estava escrito nas estrelas que um homem deste género só podia acabar crucificado e morto. Morto pelos homens que dizia defender e ressuscitado pelos escribas que andavam à procura de uma história redentora.


Já o Evangelho de Marcos passa por cima de quem gera quem, para se fixar no essencial. Marcos era um pragmático, ou um censor (é há tantos censores espalhados por esse mundo fora), o que vem a dar no mesmo. Por isso inicia o seu evangelho a dar lições de moral, passando logo para o batismo de Jesus por João Batista.


Da família nada diz e sobre o resto nada acrescenta, limitando-se a seguir o roteiro normal de milagres, parábolas e sermões. É possível que o Evangelho de Marcos seja uma edição revista do Evangelho de Mateus. Ou seja Marcos, porque lhe custou a engolir a história de José, do Espírito Santo e da gravidez de Maria, suprime o início e fica só com a vida adulta de Jesus.


O Evangelho de Lucas tem um prefácio e uma pequena história introdutória. Dá nome ao anjo que anuncia diretamente, e de viva voz, a Maria que vai conceber. Ela, pobre coitada, postada diante de tal imagem resplandecente e perplexa com tão insólita notícia, pergunta ao anjo Gabriel na sua inocência de mulher: “Como se fará isto, visto que não conheço varão?” O anjo, que destas coisas pouco sabia, pois por definição os anjos não têm sexo, respondeu-lhe: “Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra.”


Neste evangelho José aparece ao lado de Maria sem se saber bem de onde, nem como, ou porquê. Ou seja, também Lucas evitou a história de um José enganado e aturdido que se desculpa com um sonho para aceitar a gravidez da sua jovem esposa.


Lucas é mais enigmático, pois coloca o Espírito Santo a descer sobre Maria e a virtude do altíssimo a cobrir a eleita do Senhor para a seguir gerar e parir o seu filho. Estranha forma de conceção, convenhamos. E suficientemente enigmática para deixar a gesta em aberto e o enigma por desvendar.


Posteriormente tudo se desenvolve com curas milagrosas, sermões e mais sermões. E na morte e ressurreição de Jesus. Está visto que para os evangelistas o importante era a morte e a ressurreição. O nascimento de Jesus apenas veio atrapalhar. Por isso é que os criadores do Super-Homem trouxeram o bebé de Crípton. Sempre é mais credível.


O Evangelho de João é o do Verbo, onde ele descreve o início da criação do Antigo Testamento de forma lacónica. A novidade é que logo no início do aparecimento da luz resplandecente aparece um enviado de Deus que dá pelo nome de João. Digamos que João não era nada modesto.


E depois volta a aparecer outro João, o Batista, que testemunha e declara coisas de forma imperial, como hoje se diz, “com o rei na barriga”, o que naquele tempo talvez se pudesse exprimir “com Deus na barriga”. Também foge como o Diabo da cruz da história bizarra do engano de José relatada por Mateus.


Talvez seja o Evangelho de João o que melhor resume Deus e o seu filho Jesus: O Verbo se fez carne. O Jesus de João é um homem humilde, bom pastor. Depois também volta ao mesmo: milagres, sermões e histórias incríveis de voos, mortes e ressurreições. 

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