O Poema Infinito (102): nunca mais
Transporto no meu peito a madre tradição, bem junto ao coração e nela caem cálidas lágrimas de paciência. Plantas frágeis nascem-me dos dedos enquanto as ideias mais fortes se moldam na forja das conotações. Musas enormes, como seios amamentadores, parem sonhos de linguagem e sonetos escritos com fios de fogo. A alma absorve a seiva da terra através dos poros e os deuses obscenos continuam a fazer contas de morte e salvação. Tenho saudades do sol dos piqueniques, da comida dos piqueniques, das conversas dos piqueniques e dos piqueniques e também dos sons deliciosos dos amantes que se afastavam dos piqueniques para fornicarem dentro da sua doce e carinhosa lascívia. E nós fazíamos de conta que nada se passava, que a arte da vida estava em chupar os ossos do frango e em lamber os dedos cheios da gordura. As mulheres trinchavam o cordeiro e afastavam as más memórias. E riam. E contornavam delicadamente a infância. E impregnavam o ar do seu cheiro a lugares macios. E apalpavam o pão para saber da sua evidência. E todos salivávamos quando víamos o polvo e o bacalhau fritos e sibilávamos banalidades doces e bebíamos copos de sumol ou de vinho tinto ou branco. Depois íamos chapinhar na água. E o tempo parava. E as coisas tornavam-se transparentes e os nossos sonhos colidiam no meio de palavras que pousavam suavemente nos nossos ouvidos. Depois invadia-nos um sono de aves e o vento dispersava os insetos e a erva e o pranto de nos sentirmos vivos e felizes como se isso fosse quase impossível em gente da nossa condição. E as lágrimas refaziam-se repletas de tempo. Lá mais para a tarde saboreávamos a fruta e colhíamos um a um os bagos dos cachos de uvas. E as nossas avós soluçavam memórias e faziam-nos festas antigas e riam sentadas em cima das suas esperanças já desfeitas. E perguntavam-nos coisas simples e dobravam os seus velhos fios de ouro com os dedos calejados. E mastigavam mais uma maçã ressuscitando temporariamente os seus mortos. Os nossos mortos. E piscavam os olhos lacrimejantes limpos pela tristeza do choro. E ficavam em paz dentro da sua melancolia densa. Nelas sentia-se romper mais uma raiz em busca de terra e água. E cada vez mais as suas lembranças subiam para os nossos ombros e entravam a medo no nosso coração. E os homens eram agora invadidos por uma solidão imensa e por isso bebiam o resto do vinho até só quase conseguirem dizer asneiras. E riam-se da sua própria estupidez. E a noite chegava e prendia-nos a todos à eterna saudade desse dia que nunca mais voltaria. Nunca mais.