Pérolas e diamantes (1): sexta-feira treze em Montalegre
No passado 13 de Julho fui até Montalegre. E regressei fascinado. Mais uma vez seduzido, valha a verdade, pois já é a terceira sexta-feira 13 que lá vou em meia dúzia de meses. E às três é de vez. Por isso resolvi escrever sobre a minha experiência. Aquilo é uma festa pegada. Uma loucura saudável. Um espetáculo arrebatador, frenético e explosivo. Começou com um jantar muito concorrido no Pavilhão Multiusos, onde se comeu bem e se bebeu também muito bem. Enquanto se comeu e se bebeu, uns aproveitaram para irem pintar os rostos de várias cores e feitios, outros para cumprimentar os conhecidos e os amigos e outros, ainda, para tirarem fotografias junto de algumas personalidades distintas que fazem questão de se juntarem à festa das bruxas. Durante o repasto fomos assustados por diversas figuras devidamente disfarçadas de mortos vivos, monstros, bruxos, bruxas, zangões, vampiros, almas penadas e demais figuras terroríficas. Desta vez jantei em companhia dos meus amigos, o que não é de admirar, mas também junto dos elementos dos Homens da Luta, vestidos de Homens da Luta, mas que não deram muito nas vistas. Nas vistas deram dois cromos da televisão, que não conheço, mas que deu para ver que são famosos. Um dos cromos era uma rapariga, muito esgalgada, com cabelo comprido, levemente aloirado, montada numas sandálias com saltos de cortiça que mais pareciam umas andas. E se ela já era alta, com as andas ficava que parecia um lareiro, pois era esguia como os juncos. O outro personagem da TV era um jovem muito risonho, com barba se sete dias, que se adivinha não ser por falta de tempo para a desfazer, mas antes porque está na moda. Trajava calças verdes e camisa da mesma linhagem. Parecia um soldado desmazelado, mas, no entanto, com algum aprumo, numa mistura fina entre a descontração e a moda cara, que é atualmente o apanágio dos ricos e famosos. Não sei da sua importância, ou relevância, social ou cultural (e com o caso Relvas, agora até já desconfiamos que a nossa sombra se tenha licenciado sem nos avisar), mas deu para ver que o rapaz da barba e a partner esgalgada eram muito solicitados, sobretudo pelos convivas mais jovens, que com eles tiravam fotografias e se riam imenso. Eu também me ri, sobretudo porque me lembrei do emplastro, que também faz o mesmo só que por detrás dos entrevistados, enquanto aqui os emplastros sorridentes se colocavam em primeiro plano, bem na frente das máquinas fotográficas ou das câmaras da TV Barroso. Entre as sobremesas e o café, a malta foi posta a dançar por um conjunto de Chaves constituído por rapazes que tocam bem, cantam bem e afinados. Assim fosse a nossa autarquia e teríamos o futuro garantido. Entretanto, o presidente da Câmara de Montalegre aproveitou para participar na distribuição de uma bebida saborosa que nos sugeria sangue, devido à sua coloração vermelha. Mas se o sangue tivesse aquele sabor é bem provável que muitos de nós abríssemos os pulsos para ir beberricando ou pedíssemos ao vizinho, ou vizinha (conforme o gosto e as preferências), para lhe chuparmos as jugulares. (Ei, cuidado com as generalizações, aqui é só da bebida que se trata. E nada mais. Ah, seus malandros, sempre na paródia. Hem!) Durante o jantar também é frequente escutar alguns grupos ou fanfarras musicais, que tocam uma música ou duas, para ir animando a malta. A mim, das três vezes que tive o prazer e a honra, de lá ir, ficou-me a Fanfarra Kaustika, que é uma banda de metais que toca uma música frenética que até põe os mortos a dançar. Os mortos e os pernetas, como é o meu caso, que tenho pés de chumbo e um feitio que pouco deve à alegria e ao entusiamo. Timidez, já se vê. É claro que muitos a consideram mau feitio, mas não é. É mesmo timidez. Os meus amigos mais chegados bem o sabem. Se não acreditam perguntem-lhes, pois eu não quero ser juiz em causa própria, para isso já chega e sobra, o, com vossa licença, dr. Relvas. Do pavilhão rumámos caras ao castelo. Antes de iniciarmos a viagem, o senhor presidente lembrou-nos que o devíamos seguir, senão ia ser muito difícil conseguir romper por entre a multidão que àquela hora já enchia o recinto onde se realiza sempre o espetáculo da queimada. Então aquela rapaziada colocou-se atrás do presidente Fernando e aí vai de romper por entre a populaça. Todos já devidamente pintados e envergando uma capa preta e um chapéu à imagem e semelhança da bruxa de OZ. Bem, todos é uma forma de dizer. Eu não consigo. É a minha timidez. Ou mau feitio, se preferirem. Eu não me consigo pintar, nem disfarçar de coisa alguma. A minha cara de bruxo é permanente e nem sequer precisa de dissimulação. Por isso, lá fui eu atrás do senhor presidente. Só que a meio da jornada, junto ao Café Terra Fria, encontrei a Elisa, uma querida e estimada colega e amiga das Pedras Salgadas. Está claro que parei para a cumprimentar. Posso ser mau carácter, mas não sou mal-educado. E os meus amigos estão acima de tudo. No ínterim, o nosso bando pôs-se na alheta. Mas não me importei, ali ao meu lado estava a Luzia que, bem vistas as coisas, é a minha companhia de sempre e para sempre. Manias. Por isso dei-lhe a mão, para não a perder ou ela não me perder a mim, e lá rompemos pelo meio da multidão. Lá romper rompemos, mas quando chegámos perto do palco, já as cancelas estavam fechadas e os homens da segurança atentos. Como não tínhamos credenciais, ficámos do lado de fora. O senhor presidente bem nos tinha avisado, mas eu não podia passar pela Elisa e dizer-lhe apenas olá. Não podia. Podia ir até na comitiva do senhor presidente da República e ficar sem jantar, ou almoçar, ou sem comenda, mas o que não conseguia fazer era passar por uma amiga como a Elisa e dizer-lhe olá de longe. Não podia. Manias. Mau feitio. Falta de sentido hierárquico. Pois pode ser tudo isso e mais alguma coisa, mas para mim os amigos, os meus amigos, estão acima de tudo. E digo-vos do fundo do coração, estou-me borrifando para o que dizem, ou o que possam dizer a meu respeito. É que eu sou assim e já estou velho para mudar. Bem, mas voltemos ao essencial. A Paula, que também é minha amiga, e que eu prezo e estimo, ligou a perguntar onde nos encontrávamos. E a Luzia, e eu também, já agora, sorrindo porque gostámos que ela se tivesse lembrado de nós no meio daquela multidão, dissemos-lhe a verdade, que estávamos imersos naquele mar de gente tentado galgar a encosta para arriscar ver o espetáculo. Lá tentar tentámos, mas é o rompes. À medida que subíamos, cada vez as pessoas eram mais e estavam ainda mais juntas umas às outras. Muitas delas estavam mesmo sentadas, o que me meteu medo, pois pensei que se algo de estranho se passasse e desse àquela gente para correr encosta abaixo, podia-se dar ali um desastre de proporções inquietantes. Afastei esse pensamento da minha cabeça lembrando o esconjuro do padre Fontes: Vade retro Satanás para as pedras cagadeiras. No sítio mais alto a que chegámos, eu apenas conseguia ver um carvalho iluminado, dois holofotes, um poste de ferro e a esquina direita do palco. Isto olhando para a frente, porque olhando para trás apenas vislumbrava o cimo das torres do castelo e dois morcegos gigantescos, e, sobre o meu lado direito, lobrigava as chamas de umas latas onde ardia um óleo que cheirava a inferno. A Luzia apenas conseguia observar as estrelas do céu, isto se olhasse para cima, pois pequerrucha como é não via literalmente mais nada. Sentia-se sufocar. Por isso nos viemos embora, e sem muita pena, porque aquele espetáculo já nós o tínhamos visto na primeira sexta-feira da trilogia. Descemos a custo, a muito custo mesmo, a colina e fomos beber um fino a um bar onde naquele momento tocava a Fanfarra Kaustika. Cumprimentei o Abel e o Gil, dois dos mais influentes músicos da banda, pois eu só conheço gente influente, inclusive nos grupos musicais, e ficámos a ouvi-los tocar aquela sua música frenética, ou maluca se preferirem, que eu e a Luzia tanto apreciámos, e até nos atrevemos a dar uns passinhos de dança. Se algum amigo nos visse ia pensar que estávamos ébrios ou felizes. Tenho de reconhecer que estávamos ambas as coisas, mas muito mais a segunda que a primeira. Muito mais. Passado algum tempo, saímos do café e subimos a rua Direita caras ao largo da Câmara. Entretanto assistimos à descarga do fogo-de-artifício, um magnífico espetáculo de som, luz e cor. Pode ser um lugar-comum, mas também é verdade como um punho. No ecrã gigante da praça do município assistimos, descansados, ao esconjuro da queimada feito pelo padre Fontes vestido de bruxo, mas que é um santo, ao contrário de mim que sou um bruxo disfarçado de santinho e ao contrário de muita outra gente que parece santa, que se disfarça de santa, que se diz santa, mas que é pecadora até ao tutano. E nessa gente estão incluídos todos os detratores do bom padre de Vilar de Perdizes, gente que ressuma ódio e vomita insinuações e mentiras como se fossem mafarricos escatológicos expelidos pelos ânus de um demónio gigante, como uma vez vi num filme de Pasolini. Vade retro Satanás para as pedras cagadeiras. Ali descansados, a Luzia enamorou-se de um crepe de chocolate e eu mandei-me a um pão com chouriço. Nem um nem outro acabou o petisco. Mas soube-nos bem a extravagância. Pois de uma extravagância se tratou, dado que os preços por Montalegre, nestas ocasiões, ficam de luxo. Mas festa é festa, música é música. E essa é grátis. E boa. E bonita. Mais tarde, a Paula ligou-nos e lá nos voltámos a encontrar. E a partir dali, até às quatro da madrugada, foi um constante subir e descer a rua Direita, do pelourinho à câmara, da câmara ao pelourinho, bebendo fino aqui, cumprimentando amigos ali, conversando acolá. Sobretudo escutando música em todos os lados. Num crescendo de alegria e entusiasmo contagiantes. Cerca das quatro da madrugada, já um pouco cansados, regressámos a terras de Aquae Flaviae. Lá teve que ser. A idade não perdoa. Na viagem de volta, em amena cavaqueira com o Luís e a Helena, (já agora, obrigado pela boleia e pela companhia) comentámos a qualidade do evento. Foi fácil chegar à simples, e rápida conclusão, de que as sextas-feiras treze em Montalegre são o melhor espetáculo de animação de rua em Portugal. Ou seja, que nestas ocasiões a capital do barroso se transforma na capital da animação. Isto enquanto Chaves definha e morre como polo de atração turística. Enquanto os outros concelhos tratam da sua vida, o de Chaves preocupa-se em fazer de conta que faz aquilo que não sabe e não é capaz. Definhar e morrer desta maneira dá pena. Dá pena e mete dó. Tem de aparecer alguém que não se conforme com este estado de coisas. Este imobilismo mata a cidade e destrói a já pouca autoestima dos flavienses. Rezemos para que alguém nos tire desta pasmaceira, deste marasmo, deste filme medíocre. Ámen. Falta dizer que passei toda a noite agarrado à Luzia e à minha máquina fotográfica e que quando largava a mão da Luzia era apenas para fotografar aquilo que me apetecia. Não perdi nem uma nem outra, graças a Deus. Agora parece que cheguei ao fim e com um sorrisinho maroto no rosto. Escrevo isto porque os estimados leitores não me estão a ver. Mas o sorriso cá está. Isso garanto-vos.