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TerçOLHO

Este é um espaço dedicado às imagens e às tensões textuais. O resto é pura neurastenia.

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27
Jul12

O Homem Sem Memória - 68 [rep]

João Madureira

 

68 – Acordou cedinho e preparou-se para rezar as orações matinais mas lembrou-se que o que tinha rezado na casa do tio Manuel dava e sobrava para toda a semana. Por isso absteve-se de rezar. O que é demais é moléstia. Dormiu mais um pouco.


A sua querida avó preparou-lhe, sem o saber, um pequeno-almoço à inglesa: carne entremeada da pá frita na sertã, um ovo estrelado, pão centeio, café preparado na chicolateira, a que lhe juntou uma brasa incandescente, e por fim três nozes e meio cálice de aguardente, pois o dia tinha amanhecido frio e rabugento.


Foi à missa mas não rezou, observou e escutou o lento desenrolar da liturgia, o fleumático recitar das orações, os dissonantes cânticos das mulheres do coro, a voz desarranjada dos padres, a música hesitante da banda musical, os olhares distraídos e cabisbaixos dos homens, os gestos impacientes das crianças e dos jovens, a aparência compenetrada e débil das beatas, a aparência sofrida do Cristo na cruz em frente do sacrário e o semblante doce de prazer sofrido do São Sebastião pintado na cúpula de madeira do teto da igreja.


Ridiculamente trajados, os rapazes pareciam homens miniaturais enfiados nos seus fatinhos pretos onde uma camisa inexoravelmente branca sobressaía dentro do colete acanhado. O laço e os sapatos de verniz, igualmente desventurados, constituíam o remate que lhes conferia um ar de irmãos replicados. Pareciam todos idênticos, como se fossem chineses ou os pretos dos filmes do Tarzan.


As raparigas trajavam invariavelmente vestidos brancos rendados para mostrar ao Criador, e às gentes da sua aldeia e das aldeias vizinhas, que eram fêmeas, virgens e puras. Usavam conjuntamente um laço a aconchegar o vestido ao pescoço, sapatos brancos de verniz e ainda um outro laço mais vistoso e colorido na cabeça. Todas ostentavam cabelos compridos. Era a imagem de marca da época.


Dentro da igreja, por cima do perfume a flores, do odor a suor e a cera, impunha-se o intenso cheiro da naftalina.


Depois da missa, seguiu-se a procissão. Como todos os anos, os andores eram subidos. Por isso, transportá-los pelo meio das ruas estreitas e sinuosas era tarefa para os homens mais fortes e determinados. Mesmo assim, muitas vezes entre o descer e levantar, o torcer à direita e virar à esquerda, muitos anjos deixavam as suas asas, alguns santos perdiam as suas auréolas, algumas santas os seus mantos e alguns homens a sua divina paciência.


Entretanto a banda tocava, as pessoas entoavam cânticos de louvor a todos os canonizados, e os foguetes estouravam no ar para lembrar aos povos em redor que os habitantes desta aldeia eram os mais devotos dos devotos.


Finalmente, a procissão chegou ao sítio onde tinha principiado. Os homens dos andores puderam, então, sentar-se nos bancos da igreja para limpar o suor e ganhar fôlego para se dirigirem até suas casas onde os aguardava um lauto almoço. Os músicos foram distribuídos um por cada casa. Ao seu tio Manuel calhou-lhe em sorte o regente da banda.


O almoço foi servido com algum requinte. Até o mestre ficou surpreendido. O senhor Manuel, nas suas várias estadias realizadas em França junto dos seus três filhos, tinha absorvido algumas das peculiaridades da cultura culinária francesa. Por exemplo, fornecia agora como entrada o melão em talhadas previamente descascadas para servir de acompanhamento às finas tranches de presunto, servia ternos folhados de galinha cozidos no forno, atreveu-se mesmo a dar a provar aos convidados “pâté de canard au Porto” com torradinhas, e, ó ousadia!, momentos antes do prato principal, colocou em frente de cada comensal meia alface tenra (colhida no seu quintal, mesmo ao lado das meloas, fruto que foi o primeiro a semear na aldeia com muito sucesso, para inveja dos invejosos),  guarnecida com um filete de anchova. Tudo isto foi regado com um branco palhete, colheita própria, de se lhe tirar o chapéu. O seu travo ligeiramente frutado e dulcificado veio mesmo a calhar para refrear o sabor intenso e ácido do sal da anchova.


Ainda todos estavam a recompor-se das torcidelas de nariz e da salivação excessiva por causa da anchova encavalitada na alface, quando foi servido o cabrito assado acompanhado de batatas também assadas e de um arroz de miúdos. O branco palhete foi de imediato substituído por um mais adequado tinto forte para desfazer gorduras e estimular a boa disposição.


A sobremesa, para os convidados mais requintados, foi composta por meias esferas de meloa guarnecidas com vinho generoso, colheita de um amigo da casa de origem duriense, e ainda por bolos, biscoitos sortidos, e um licor de noz de fabrico caseiro.


Foi servido ainda um café bem forte para cortar o álcool. E aos homens mais atrevidos foi oferecido um charuto de razoável qualidade, que alguns fumaram e outros guardaram para mais tarde. Depois dormiu-se a sesta.


Lá mais para o fim da tarde tocou a banda no coreto. O baile não foi muito participado por causa do calor. Mas o arraial foi de arromba.


Além da Filarmónica atuou um conjunto de músicos galegos que tocava todo o tipo de música. Com a banda bailavam os pares mais velhos, ou os jovens mais tradicionais. Com o conjunto dançavam todos, até os coxos, o que provocou uma nuvem de poeira que muito perturbou dançarinos e basbaques, apesar de o recinto ter sido regado durante a tarde. Nas tascas improvisadas, os forasteiros comiam, bebiam e folgavam. Os que eram conhecidos das pessoas da aldeia eram convidados a irem até às adegas beberem um copo e trincar algum pedaço de carne que tivesse sobrado. Por volta da meia-noite já todos os homens, e algumas mulheres, estavam bêbados. Era a hora má. Com os ânimos exaltados, surgiam as provocações dos da terra aos forasteiros e de estes aos da terra. Povos de aldeias vizinhas são rivais para toda a vida. Então se pelo meio algum deles se atrever a namoriscar rapariga do povo, o caldo fica mesmo entornado.


Foi o que aconteceu. No meio do arraial principiou um redemoinho de criaturas que mais parecia uma disputa entre bruxas e zângãos. Começou a chover porrada da grossa: murros, pontapés e paulada. O José, curioso, correu para lá. Aquilo só podia ser obra de gente malformada. Qual não foi o seu espanto quando verificou que, no meio do tumulto, estava o seu tio João a assentar porrada num rapaz emigrante de Soutelinho da Raia que se atreveu a dançar com a sua sobrinha mais nova, filha do seu irmão Manuel, sem a autorização do respetivo pai. Enquanto a rapariga chorava, depois de o pai lhe ter dado umas estaladas bem dadas, o tio João continuava a bater no pobre moço. E não abrandava. Isto fez com que os mancebos de Soutelinho se pusessem em guarda e sacassem das navalhas e dos trabucos dos respetivos bolsos. Acudiu a Guarda Republicana com as espingardas prontas para o que desse e viesse. O ambiente ficou à beira da guerra civil, uns de cá e outros de lá, cada um com as suas armadilhadas razões e cada qual com o seu orgulho ferido. Nisto o José abraçou o tio João e pediu-lhe que, por amor de Deus, pensasse no bom nome da família, no falecido pai e na querida mãe que estava ali afogada em pranto. Lembrou-lhe que também o avô José, e seu saudoso pai, veio de Vilela para a aldeia arranjar mulher que prestasse. E não se arrependeu. Agora o pobre rapaz não podia namorar com quem engraçasse? Ora, ora! Dominada a fera, estabeleceu-se o armistício. O Tio João foi para ao pé dos seus, a sua sobrinha foi para casa curtir as mágoas e a vergonha, e o rapaz namoradeiro, mesmo contra a sua vontade expressa, rumou no jipe da GNR caras à aldeia donde tinha sido nado e criado. 

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