Talvez seja por eu ter nascido numa aldeia que tem o S. Sebastião como padroeiro que desde sempre atraio sobre mim as setas dos inimigos. Só que como vivemos nos tempos modernos, em vez de setas verdadeiras eu apenas sou vítima das suas palavras afiadas ou dos seus rancores mais obscuros.
Esses embuçados, sempre ocultos pelo manto diáfano do anonimato, cumprem com a tradição, nublando-se com o outro Sebastião, não o santo, mas o rei garoto que se sumiu na bruma para nunca mais. Mas cada um tem o fado que merece. E eu já me habituei à minha triste sina. É certo e sabido: o bom português aspira ao anonimato.
A eles, os outros, a esses intrépidos embuçados, saltam-lhes dos lábios os velhíssimos truques da arte da sedução da forma mais airosa possível, a mim ouve-se, quando muito, o engolir de palavras que não pronuncio por educação. E olhem que engolir a saliva de forma intrusiva não é mesinha que se aconselhe, nem mesmo aos adversários.
Presentemente consolo-me em contar histórias, mais ou menos frescas, que, mesmo sendo incompletas, como tudo na vida, não deixam de ser abundantemente inventadas. E olhem que nunca estão concluídas, como todos bem sabemos. Encontram-se sempre à espera de uma nova oportunidade para serem continuadas ou então narradas do fim para o princípio ou vice-versa, pois para o caso tanto monta.
Lembro-me de uma primavera, nos tempos em que a comida não abundava mas sobejava o trabalho nos campos, de estar bem em frente da junta de bois do meu avô e a guiá-la, dando pequenas pancadas com a aguilhada no jugo, de ver-me a tropeçar mesmo em frente das pesadas patas dos bichos, para desespero do meu avô que correu na minha direção com a atrapalhada intenção de me salvar de ser trepado e esmagado, e de eu, num gesto instintivo, ter rebolado para fora do alcance das patas dos bois. Pois lá diz o velho ditado, ao menino e ao borracho põe Deus a mão por baixo.
Neste caso posso escrever sem me enganar que o João Lorde foi salvo da excomunhão em vida, pois não podendo o meu avô chegar a tempo de me salvar, a sua mulher e a sua filha querida tinham-no cruxificado, não num madeiro de pau, mas antes numa cruz de palavras que o consumiriam em três noites e quatro dias e ainda o transformariam em alma penada por tamanho pecado e tão torpe negligência.
Quando ele, atónito, pegou em mim ao colo com um ar sério de atrapalhação e orgulho, e me fez uma festa com tanto carinho e esforço como só um cristo rei do tamanho do nosso e do brasileiro podem fazer, lembrou-me que existe sempre uma saída para um problema, a habilidade está em reagir a tempo.
Ainda me recordo das suas palavras: Nunca te esqueças disso. Perante a adversidade, rebola, afasta-te das patorras das bestas. Não te fies no seu olhar dócil e na sua mansidão castrada. Mesmo pacatos, os bois passam por cima de ti sem sequer se deterem. Nunca te fies nas aparências. Rebola, rebola sempre. Nunca te dixes espezinhar. Rebola.
Amiúde ainda me lembro da sua voz de lavrador que rebentava com as paredes da Clerga e da paz com que olhava para aqueles sítios que pouco tinham de lírico: uma paisagem solarenga, disseminada pelas diversas propriedades, por vezes estilizada pela chuva, ou disfarçada pelo nevoeiro. Com a sua voz grossa, unicamente as badaladas do sino da igreja podiam rivalizar.
Era a minha aldeia, uma pobre e mansa circunstância que não permitia grandes elevações de consciência. Talvez daí este meu espírito ríspido, dado ter sido talhado com o gume das palavras verdadeiras e temperado com as geadas de janeiro.
Era frequente ir para o sítio do feno meditar e descansar. Eu e os gatos. Depois punha-me a pensar realidades, possivelmente profundas, ou talvez não. Mas, ó deus das pequenas coisas, por incrível que pareça, este vosso amigo já então se punha a pensar pela sua cabeça. O atrevimento já lhe vem de longe.
Quando menino era assim, um sempre na lua. Pensava em coisas argutas acerca do céu estrelado, sobre os desenhos inscritos na face do satélite da Terra e, muito provavelmente, em coisas poéticas, acabadinhas de misturar, como o pão na masseira, que levedava bem embrulhado no seu manto de linho e onde a cruz desenhada em cada bola começava a desaparecer ao compasso com que se esfumavam as orações que da boca da minha avó saíam, ciciadas a gosto, cantadas com carinho, sussurradas como cânticos mágicos.
O tempo lá ia passando sem grande utilidade. Ou a sua memória. Pois as memórias assentam em memórias que, por sua vez, assentam noutras memórias. E por aí fora.
O que aprendi de ciência certa é que é preciso muito tempo para se acabar de conhecer os indivíduos. E como muito bem filosofava D. Quixote: “Portanto Sancho, por onde tanta boa gente tem passado posso eu passar também.”
Com a vossa licença, atrevo-me até a mais, pois um pouco à frente, a obra-prima de Cervantes narra a desventura dos seus dois personagens depois de ambos apanharem uma surra das valentes, generosamente brindada por uns viajantes manchegos que tiveram a desdita de se atravessarem nos heroicos destinos do dono do Rocinante e do seu gentil escudeiro.
Este, mesmo moído de pancada, tem ainda tempo, e inteligência, para refletir e afirmar para um Sancho lastimável e lastimado: “Deixa-te disso e faz das fraquezas forças, Sancho, que assim eu farei; e vejamos como está Rocinante, que, ao que me parece, o coitado não apanhou menor quinhão que nós.”
Por isso, aos anónimos de serviço respondo com a admiração do sábio escudeiro do cavaleiro da triste figura: “Não admira, pois é também andante; o que a mim me espanta é, que o meu jumento escapasse com as costas inteiras donde nós trouxemos quebradas as costelas.”
Aos corajosos do incitamento que não sarrabiscam uma linha mas estão continuamente habilitados a rir-se dos adversários e a comentarem a escrita dos demais e sempre, sempre, sempre a resguardo do anonimato, lhes digo em jeito de Sancho Pança: “Mas eu lhe juro, à fé de pobre homem que sou, que mais estou eu para emplastros, que para arrazoados.”
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